Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando o riso era o melhor remédio

Se o comum da gente soubesse o gozo imenso que vem da arte, se a gente comum
vivesse o prazer grande que é viver na arte, se a gente de todos nós despertasse
para a libertação que vem da arte, se, quando e se e então pudéssemos renascer,
viver mais uma vez com a consciência da vida anterior, ah, então saberíamos
todos exaltar e ver e ser a felicidade que vem do artista.







Ronald Golias, o Carlos Bronco
Dinossauro

Essas palavras nos vêm porque as idéias nos atropelam. Quando brotou o
parágrafo acima, queríamos apenas dizer em uma só frase e golpe: adeus a Ronald
Golias, que éramos e somos ignorantes do valor que ele possuía no mundo que se
vai com o artista. E mais, y más e mas e porém: por que a burrice humana teima
em somente ver o gênio póstumo? Por que não vemos o gênio em carne e osso que se
move diante dos nossos olhos? Deveríamos, em nome da coerência, desprezá-lo
igualmente quando parte sem volta. Deveríamos, até em nome da justiça, adotar o
princípio de que se um homem não foi valorizado em vida, assim continuar pelos
séculos póstumos.


Em compensação, acompanhem a crueldade, como não temos uma segunda
existência, recebemos todos o dom e a graça de lamentar o que perdemos, como se
o chorar o bem perdido fosse a própria segunda oportunidade. Por isto, permitam
essa breve inscrição na lápide que confirma a estupidez humana, permitam, pois,
que se inscreva e se escreva esta verdade póstuma: Ronald Golias foi o maior
ator cômico do Brasil.


Dizer assim é fácil, parece mais frase à beira do túmulo, daqueles discursos
que arrancam mais lágrimas pela hipocrisia que pelo morto. Digamos de outra
maneira: se o ator cômico é uma categoria mais alta que o ator dramático,
digamos então esta conseqüência singela: Ronald Golias foi o maior ator do
Brasil. Mas dizer isto ainda é muito fácil, até parece purgação, remorso,
arrependimento, e outras compensações com que Deus nos presenteou porque nos
proibiu a imortalidade.


A prova, se prova há em terreno inseguro, a prova documental do que afirmamos
seria o programa A Família Trapo, de 1967 a 1971. Para desgraça nossa, no
entanto, toda a série, com exceção de raros minutos, sumiu no fogo e no incêndio
da TV Record. Poderíamos tentar ainda assim ligar algumas pistas documentais,
alguns indícios do que afirmamos, porque ele continuou a representar na
televisão, no cinema até este 2005. Melhor não. Melhor evitar esse caminho
porque seria injusto para com a verve desse criador lembrá-lo nas últimas
representações. O medíocre desses últimos papéis o coração da gente esquece.
Melhor vê-lo então sem documento físico, com a força do que ficou em nossa
memória.


‘Vou ali’







A Família Trapo: da esq. para dir, Cidinha
Campos, Renata Fronzi, Jô Soares (em pé), Otelo Zeloni e Ronald
Golias

A Família Trapo era um programa, uma família classe média, que sem
Ronald Golias no papel de Bronco seria a coisa mais tediosa que pode haver num
aglomerado que se chama família. A sinopse do programa informa: ‘As confusões
aprontadas pelo malandro Carlos Bronco Dinossauro, cunhado de Pepino Trapo, o
patriarca da família. Além de infernizar o cunhado, Bronco infernizava também a
vida dos sobrinhos, da irmã e do insólito mordomo Gordon, vivido por Jô Soares’.


Este é o resumo. É menos que a sombra de um fantasma. Imaginem agora um
indivíduo que não pára em cena, que ao ouvir falas pacientes é impaciente, pisca
sempre os olhos, que torce a boca, que se requebra, dá voltas no palco do
teatro. Imaginaram? Imaginaram pouco. Imaginem um homem que modula a voz, que
fala num acento caipira do interior de São Paulo, que distorce e cria palavras,
corta sílabas, para melhor enfatizar a ignorância do personagem, que não recua
diante de nada, de nada, nem diante do mais elementar ato de excreção dos
intestinos, ainda que sem perder a elegância, se assim podemos nos referir a um
indivíduo que se vestia à semelhança de Cantinflas.


Imaginaram? Imaginem agora um ator que em plena representação, em plena fala,
sai do palco, some, com as mãos sobre o ventre e avisa: ‘Vou ali’. E deixa o
pobre do coadjuvante sozinho diante da platéia, de um coadjuvante que era também
um grande ator, e que por isso comentava com as mãos no nariz, para todo o
público: ‘Ninguém suporta a peste’. Imaginem mais e acompanhem um pouco.


Orgasmo de apoteose


Um dos núcleos de comicidade, no roteiro, era o desprezo que Bronco dava ao
trabalho, da fuga que mantinha a qualquer tentativa de fazê-lo ganhar o pão com
o suor do próprio rosto. Isto no roteiro. Mas era de uma imprevisão simples o
que Ronald Golias fazia diante disso.


Por exemplo, quando estava absolutamente cercado, quando não possuía
argumentos bons, convincentes, para deixar de viver à custa da beleza da irmã,
ele, súbito, tinha febre! Dizia, a seu modo, com estremecimentos, e a levantar o
paletó sujo até o pescoço: ‘Que frio, que frio, que friiiio’. E então, para que
não morresse o homem, que caía e abria os olhos para o público, a família
aceitava que o maldito ocioso voltasse a seu normal. Que era: viver na eterna
dependência, com ares de alta classe média ao receber visitantes na casa, e com
uma hipersensibilidade, com melindres finos a qualquer leve insinuação de que
era um vadio.


Claro, nem por isso o conflito primário de que vivia sob o dinheiro do
cunhado era resolvido. E por isso brigavam, o italiano que enriquecera no Brasil
e o cunhado, que era uma despesa não prevista no casamento do italiano.
Brigavam, feio. Então começavam, num crescendo, os insultos.


Pernachia. Parasita!, gritava-lhe o italiano.


Ao que voltava Ronald Golias, contra o passado heróico do bom italiano:


– Mussolini! Mussolini! –, e, insatisfeito, punha-se a cantar em falsete um
hino fascista.


Então Pepino Trapo se acercava mais do ator à beira da histeria, ambos. E
então vinha o que na memória é o ponto alto da imprevisibilidade do artista. O
clímax, um orgasmo de apoteose: Ronald Golias caía num ataque apoplético, a
debater-se, a babar-se, rolando em convulsões. Ele batia com a cabeça no palco e
danava-se a bater no peito com os punhos, como se fosse um macaco no chão.
Acredito até hoje que os atores em cena deviam se perguntar, diante da
epilepsia: ‘Homem, será que desta vez é verdade?’.


Ignorância do Rei


Aliás, ‘liás’, como dizia o personagem a cruzar as pernas, mui importante e
educadamente, o seu improviso, o que no teatro chamam de ‘caco’, é um capítulo
que torna pálida qualquer tese. Era ver, era sentir, era gozar o elementar da
criação. Numa tosca frase, deveria ser dito que os seus improvisos eram mais que
uma co-autoria, como de resto é todo ato de interpretar. Os seus improvisos eram
a própria criação.


Isto quer dizer, por um lado, que ele tornava cômico o que no roteiro apenas
era risível. Por outro, que ele superava a dificuldade com uma descoberta, com
um ser novo. Ora, em nenhum roteiro seria previsto que o ator tivesse disenteria
em cena. Em nenhum seria possível prever o embaraço do artista diante do galã
famoso, que a cinco centímetros do rosto e da voz do astro, explodisse:


– Pára, pára com isso, desse jeito nem eu resisto!


Em nenhum deles seria possível o que ele fez com Pelé. O roteiro, é certo,
dispunha que ele ignorasse o nome e o talento do jogador. Mas ele faz um achado,
vejam: ele se curva, não para saudar o rei, mas para bater com a cabeça no chão
diante da ignorância do Rei. Ele se dobra, homem sábio que é da arte de jogar,
porque não suporta mais a estupidez de Pelé diante do futebol. O idiota que faz
papel de gênio, o ignorante que se julga sábio, que não agüenta a grande
ignorância em torno de si, e por isto se curva, ‘irônico’, isto é simplesmente
irresistível.


Rir, sorrir


Há uma tendência na crítica, aquela que se julga mui genial e culta, a
realizar sem que disso saiba o papel do Bronco de Ronald Golias, há uma corrente
crítica que vê em Golias um tipo de humor ingênuo. Um quase primitivo. E isto,
amigos, é apenas mais uma vitória da arte de representar, a própria reencarnação
de que a melhor arte esconde a sua arte.


Idiotas, sim, eram os seus últimos papéis. Mas ainda aqui, ainda assim, o
velho artista, aos 76 anos, não se curvava, não se nivelava à precariedade
burra, apesar dos vincos no rosto e da perda ágil dos movimentos. Caía, mas como
dizê-lo?, caía no talento, mas sem um ataque apoplético. E que homem é o mesmo
quando as energias enfraquecem, quando a luz do seu gênio entra em fade
out
?


Agora tentem, respeitáveis críticos, tentem ao menos em sonho algo como o
Bronco em 1967, 1968, da Família Trapo. Tentem e verão de que natureza é
feito esse humor ingênuo. Um gênio em papel de idiota, um dono do palco, dos
atos, do improviso, um mestre da representação. Sem trombetas, a não ser as que
mandava soar o idiota Bronco, daquelas que soam nas horas mais impróprias
durante uma conversação, de péssimo e imprevisível odor.


A lembrança que nos vem de Golias, nessa hora em que parte, no dia dos santos
Cosme e Damião, mistura-se com a nossa própria vida quando se anunciava 1968.
Todos adolescentes amigos também vivíamos uma comédia, que para nós à época mais
se assemelhava a um drama. Talvez por isso todos fôssemos possuídos pelo desejo
imenso de rir, de sorrir. Todos os sábados, uma hora por semana de felicidade.

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Jornalista e escritor