Costuma-se dizer que a história é escrita pelos vencedores. A trajetória política do engenheiro Leonel de Moura Brizola, morto em 21 de junho, o credenciou, com papel e caneta, a eternizar páginas relevantes da vida do Brasil nos anos 1950 e 60. Mas a continuidade desta possibilidade foi negada por ele mesmo e pela mídia desde seu retorno ao País, no início da ‘abertura’.
Ao contrário do que quis nos fazer crer a cobertura nauseante da imprensa na última semana, Brizola estava divorciado da realidade política nacional desde seu exílio. Historiograficamente, sua morte não significou o fim de uma era, mas o fim do principal remanescente de um passado que o Brasil não deve esquecer. Mas também não deveria se motivar a repetir. Se podemos falar em qualidades de Brizola, elas não repousavam em sua ‘coerência’, atributo que antes do dia 21 era qualificado por seus aliados e adversários como ‘teimosia’ ou ‘anacronismo’.
Do ponto de vista da política e do poder simbólico da mídia, o fundador do PDT foi um caso exemplar por nunca ter aceito o novo exílio imposto a ele por alguns meios de comunicação desde a década de 1980. Sua queda-de-braço com os donos da mídia o obrigava a pagar, primeiro do próprio bolso e depois dos cofres do PDT, seus famosos ‘tijolaços’ (anúncios pagos sob forma de ‘a pedido’) para que sua peculiar visão de mundo chegasse ao cidadão comum.
Essa reflexão, porém, não tem a pretensão de revisar a história do caudilho gaúcho nem de nossa eterna vocação política ao sebastianismo e ao nacional-populismo. A intenção é perguntar uma coisa:
Por que as Organizações Globo dedicaram páginas e páginas de seus jornais e revistas, além de generosos minutos no rádio e na TV, para louvar o político morto que fez questão de boicotar em vida?
Na lista negra
No dia 22 de junho, o Jornal Nacional destinou quase meia hora de seu prestigiado tempo para tratar da morte de Brizola. Foram dois blocos de depoimentos de políticos, cobertura do velório no Palácio da Guanabara, relato biográfico e enquetes. É preciso destacar que talvez somente a morte de Roberto Marinho tenham recebido mais atenção do principal telejornal da emissora. Nas duas ocasiões, mais do que as notícias estavam em jogo.
Para o telespectador desavisado, o saldo de toda aquela cobertura emocional, característica destes momentos no Brasil, poderia ser assim interpretado: ‘Morreu um grande político brasileiro, que manteve a coerência e a franqueza até o fim’. Esta visão foi verbalizada na própria edição da reportagem, onde tanto uma contemporânea de Brizola quanto uma adolescente diziam: ‘Morreu a política brasileira’. De forma isolada, este fato poderia apenas seguir a lógica natural do restante da mídia, que optou por explorar os índices de audiência e de vendagem. Por contraste, serviu para minar o atual governo ao destacar a ‘coerência’ de Brizola em contradição à presença inesperada de um Lula ‘traidor’.
No dia seguinte, porém, o jornal O Globo estampou duas matérias que podem ser consideradas por alguns um grande esforço de autocrítica e de registro histórico do papel do grupo na trajetória de Brizola. Mas também podem ser vistas como uma tentativa de apontar as ‘incoerências’ do caudilho no trato com Roberto Marinho e com suas empresas.
Sempre de um só ponto de vista, uma das matérias registra que o pedetista procurou Marinho para ‘esquecer o passado’ assim que voltou do exílio. Depois disso, teria radicalizado cada vez mais após o episódio do Proconsult, ‘uma suposta tentativa de fraude nas eleições para o governo do Rio’, nas palavras do jornal. Mais de dez anos depois, frisa o jornal, Brizola teria reconhecido evolução na cobertura editorial do Globo.
A segunda matéria vai na mesma linha ao detalhar a visita do político à redação do jornal para uma longa entrevista, já em 2002, quando fica claro que coerência e equilíbrio sempre estiveram presentes ao lado de Marinho. Nenhum dos dois textos destaca que Brizola ficou mais de dez anos na ‘lista negra’ do jornalismo das Organizações Globo. Seria pedir demais?
Lições do Vaticano
Por falar em coerência, é importante atentar para este processo autolimpante de revisão histórica que a mídia brasileira se propôs a fazer a partir dos encartes e programas especiais sobre os 40 anos do golpe militar de 1964. No caso da Rede Globo, a viagem ao passado iniciou muito antes da morte de Roberto Marinho. Seus ‘historiadores’ já passaram pela negação sobre a adesão tardia à cobertura da campanha pelas Diretas-Já, em 1984, e pela intervenção partidária no debate eleitoral de 1989. Agora, esmeram-se em propagar a versão de que a vontade de seu ‘líder’ não contribuiu para postergar a declaração de vitória de Brizola nas eleições de 1982 até o limite do aceitável. Paulo Henrique Amorim e Eliakim Araújo deram testemunhos claros deste comportamento em textos mais informativos do que este [veja as matérias na rubrica Entre Aspas desta edição].
Na ânsia de executar um exercício autolimpante e civilizador em sua linha editorial, processo recomendável a toda empresa jornalística que não queira se condenar ao suicídio, a Rede Globo só não pode reescrever a história ou apagar alguns de seus traços indeléveis sempre que abordar episódios em que esteve diretamente envolvida – mais como agente do que como testemunha.
O que ocorreu na edição do Jornal Nacional de terça-feira (22/6), e no jornal O Globo do dia seguinte, foi mais uma dessas tentativas. Espera-se que seus profissionais saibam evitar novas sessões de assepsia que condenem nossa história a permanecer com lapsos de percurso. Até o Vaticano aprendeu que por mais condenável que seja um comportamento, abafá-lo ou maquiá-lo só contribui para reforçá-lo.
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Jornalista