Publicado originalmente pelo blog Balaio do Kotscho.
Para quem já passou dos 70, ir a velórios de contemporâneos se torna compromisso cada vez mais frequente, bem mais do que ir a festas e homenagens.
É a lei da vida, não tem jeito. Estamos ficando com o prazo de validade vencido, como constatou hoje a minha amiga e ex-chefe Dorrit Harazim, em sua coluna no Globo, dedicada a Clóvis Rossi.
Na abertura do texto, Dorrit lembrou de uma frase do grande (literalmente) jornalista morto na sexta-feira, publicada no prefácio do meu livro Aventura da reportagem (em parceria com Gilberto Dimenstein): “Repórter é fundamental. É a única função pela qual vale a pena ser jornalista”.
Durante o velório e o enterro de Rossi, no sábado de manhã, algumas centenas de jornalistas da nossa geração se reencontraram para a despedida do mestre.
Muitos não se viam há anos e a pergunta era inevitável: “Por onde você anda?”
Como a imensa maioria não está mais nas redações, cada vez menores, onde trabalhamos em diferentes épocas, perdemos o contato e até esquecemos os nomes de quem escrevia ao nosso lado.
“Como é mesmo o nome daquele ali?” era a pergunta mais frequente que uns faziam aos outros.
Mesmo os que ainda estão numa grande redação geralmente agora trabalham em casa e nem conhecem muitos colegas, como é o meu caso.
Foi-se o tempo em que todos se cruzavam em meia dúzia de redações, o nosso mundinho num mercado de trabalho ainda muito restrito.
Rossi, o popular Grandão, teria se divertido muito se tivesse ido ao próprio velório para ouvir como falavam bem dele.
Dono de uma ironia cortante que não perdoava ninguém, nem ele mesmo, certamente diria: “Só estão falando tudo isso porque eu morri… Mortos sempre viram santos…”
No caso dele, um caso raro, isso não é verdade. Falavam bem dele ainda em vida. O velho amigo era uma unanimidade, não só entre jornalistas, mas em todas as áreas por onde circulava, ou seja, o mundo inteiro.
“Pô, agora a gente só se encontra em velório…”, seria provavelmente uma das formas dele cumprimentar alguém de quem não se lembrava.
Agora, essa geração do Rossi criada com crachás, carteiras assinadas, planos de saúde e outras benfeitorias deixou de incorporar ao próprio nome o da empresa onde trabalha, o que era muito comum. “Muito prazer, eu sou o Ancelmo, do Globo”.
Por força das circunstâncias, quase todos trabalham agora por conta própria, ou seja, fazem frilas, bicos, blogs, serviços temporários ou consultorias, qualquer coisa. Isso quando ainda encontram algum trabalho, porque boa parte está contra a vontade fora do mercado, que hoje prefere os mais jovens e mais baratos. Foi-se também o tempo dos altos salários em que você podia ter apenas um emprego, com direito a férias e 13º salário.
Encostado em alguma mureta do cemitério, Rossi ficaria só observando as cenas algo constrangidas desses reencontros em que a memória costuma falhar. Se fosse escrever uma matéria, nem precisaria tomar nota sobre o que viu e ouviu porque ele já costumava fazer isso só com os olhos e os ouvidos sempre atentos.
Desde a morte de meu pai, quando eu tinha 12 anos, nem sei até hoje porque, nessas horas sempre me dá vontade de rir e contar piadas, lembrar de fatos engraçados de outros velórios.
Um que não esqueço foi o velório de outro grande repórter, José Roberto Alencar, o “Galo Cego”, que foi nosso colega na Folha dos anos 80. Nunca vi tanta moça bonita junta como nesse dia. Nem todas tinham sido suas namoradas, mas poderiam ter sido.
Alencar era deficiente visual, como se diz hoje em dia, escrevia com a cara enfiada na máquina, todo desengonçado, magro e alto como um bambu, nada tinha de Marlon Brando, mas possuía um charme irresistível para o eleitorado feminino.
Havia ali representantes de todas as redações da cidade, porque ele já tinha passado por todas.
Aí fizeram aquela pergunta inevitável a um dos presentes, que andava desaparecido, um sujeito muito elegante, de sobretudo inglês.
— Por onde você anda?
— Eu? Eu ando pelas ruas da cidade…
Era um jeito de dizer que não estava trabalhando em lugar nenhum. Mas são muito raros os que conseguem viver só da aposentadoria do INSS.
Jornalistas que passam a vida andando pelas ruas das cidades e dos campos para fazer reportagens não têm tempo de ganhar dinheiro e se precaver para a velhice.
Rossi era diferente até nisso: tão precavido ele era que tinha comprado seu túmulo a preço de ocasião, em 1971…
E, pra quem fica, vida que segue.
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Ricardo Kotscho é jornalista.