Será mera coincidência, natural passagem do tempo ou mudança inevitável de gerações, mas na mesma proporção do surgimento das novas tecnologias na mídia – destaque para os blogs, cujas distorções são estímulos nocivos a um patético amadorismo coletivo – desaparecem os grandes jornalistas, os da velha escola, que só contavam com seu próprio talento e batucavam, solitários, numa cansada e rangente Olivetti. Agora foi a vez do norte-americano David Halberstam, morto, aos 73 anos, num estúpido acidente de carro, perto de São Francisco, a caminho de uma entrevista para terminar seu 22º livro. Repórter e escritor até o fim, daqueles que pouco se fazem hoje.
Forjado numa época rica, exuberante do jornalismo americano, nas décadas de 1960 e 70, em meio ao florescimento do new journalism e os fantasiosos vôos literários de suas estrelas (Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer, Joan Didion e Hunter S. Thompson, entre outros), Halberstam ganhou respeito e prestígio quando, correspondente do New York Times no Vietnã, em 1962, denunciou numa série de matérias as mentiras e falácias do governo norte-americano que, protetor do regime corrupto e ineficaz do Vietnã do Sul, só queria ver divulgadas notícias positivas sobre o rumo, já prestes a se perder, da luta contra a guerrilha vietcong.
Dedo em riste, voz tronitroante, o repórter trintão, alto e magrelo, enfrentou os arrogantes generais e coronéis do Pentágono e lhes disse, na cara, que enganavam o povo norte-americano: Washington perdia, e perderia, a guerra. O então presidente Lyndon B. Johnson espumava de raiva, gritava impropérios no Salão Oval da Casa Branca. Antes, seu antecessor, o presidente John Kennedy, chegara a pedir a cabeça do jornalista ao publisher do NYT, Arthur Ochs Sulzberger, mas este, firme, respondeu que o correspondente continuaria onde estava, em Saigon, cumprindo, e muito bem, sua missão profissional.
Nasce o escritor
De volta aos Estados Unidos, vencedor de um prêmio Pulitzer em 1964 por sua cobertura da guerra e mais alguns anos batendo perna na reportagem dentro e fora do país, Halberstam, cansado da política interna do jornal e sua orientação editorial, desentendeu-se com o editor-chefe, o não menos conflitivo Abe Rosenthal e, em 1967, pediu as contas.
Já decidira seu caminho futuro: ser um escritor independente, dono absoluto de suas próprias pautas e temas e, principalmente, de suas próprias opiniões, convertendo-se, aos poucos, numa produtiva mistura de jornalista, ensaísta e historiador. E para exercer os três ofícios de forma honesta e contundente estava muito bem capacitado, pois era, segundo o testemunho de amigos, homem de uma integridade profissional inabalável, dado a explosões de ira se algum assunto o indignava e logo tratava de pôr tudo para fora através da escrita.
Dono de um texto claro e fluente, hábil em armar ou reconstruir cenários panorâmicos e meticulosos, tudo temperado com um toque dramático na narrativa, Halberstam lançou-se no campo chamado pelos norte-americanos de non-fiction writing, ao qual dedicaria suas energias criativas e recursos técnicos pelos 40 anos seguintes, publicando mais de 20 livros, longos, copiosos, produtos de ampla investigação de campo, exaustivas entrevistas, muita leitura e muito reescrever. (Essa queda para as descrições derramadas, aliás, trouxe-lhe não poucas críticas ácidas nos meios culturais dos Estados Unidos).
Perguntador obsessivo, infatigável nas idas e vindas de uma apuração rigorosa, voltava às fontes uma e outra vez, telefonando, anotando e gravando até se dar por satisfeito. Ao saber de sua morte, o velho amigo Gay Talese só pôde dizer o seguinte: ‘O David não tinha um osso mole naquele corpanzil’.
Vietnã passado a limpo
De seus livros, vários deles dedicados ao esporte – basquetebol e futebol americano –, uma de suas grandes paixões, três deles são da maior relevância, sobretudo para leitores de outras partes do mundo, para entender alguns dos mais complexos aspectos da vida e da sociedade, da cultura e da política norte-americana dos últimos 50 anos: The best and the brightest, de 1972, The powers that be, de 1979, e The reckoning, de 1986.
Em The best and the brightest, seu primeiro livro importante e primeiro best-seller, Halberstam, de posse de suas experiências in loco e reflexões amadurecidas como ex-correspondente de guerra, analisa a tragédia do envolvimento norte-americano na guerra do Vietnã, culminado numa vergonhosa derrota em 1975. A questão básica do livro era essa: como havia sido possível que cabeças tão brilhantes, tanto no governo de Kennedy como no de Johnson, tivessem tomado decisões tão desastrosas em relação à guerra na Ásia? O livro abriu nos Estados Unidos uma série de debates vigorosos sobre o conflito, enfurecendo ainda mais os gaviões estrelados do Pentágono, mas sepultando de uma vez por todas as manobras oficiais para ocultar o acachapante fracasso bélico do país mais poderoso do mundo.
No segundo livro importante, The powers that be, ele apresenta um portentoso estudo do crescimento da influência da imprensa sobre a opinião pública norte-americana, a forma como jornais, revistas, rádio e televisão saíram, nos anos 1960, da condição de meros colhedores de notícias e se transformaram em atentos e tenazes analistas dos grandes acontecimentos do momento – o escândalo Watergate entre eles. O escritor realça o papel da rede de TV CBS, do Wasghinton Post, do New York Times e do Los Angeles Times como exemplos de coberturas magníficas e corajosas nas épocas de crise nacional.
Conselhos de mestre
Movido por uma insaciável curiosidade intelectual, Halberstam não se gabava de ser especialista em tal ou qual assunto. Passava de um tema a outro com enorme facilidade e entrega total durante meses, às vezes anos. Foi assim com seu livro sobre o declínio da indústria automobilística norte-americana, The reckoning, no qual relata, numa impressionante imersão nos bastidores do negócio dos dois lados do mundo, a invasão dos carros japoneses no mercado dos Estados Unidos e o conseqüente abalo nos show-rooms das concessionárias e nas salas de reunião das três grandes de Detroit na época – Ford, GM e Chrysler.
Para recolher o material básico do livro, Halberstam entrevistou altos executivos da indústria norte-americana em Detroit, além de passar oito meses em Tóquio, ouvindo a versão dos cada vez mais vorazes concorrentes japoneses. Com estes, o experiente repórter penou bastante e deles dizia: ‘Foi o meu livro mais difícil de fazer, pois os japoneses são ótimos para absorver informação dos outros, mas duríssimos para abrir o jogo, revelar alguma coisa deles próprios…’.
Aos jovens estudantes de jornalismo ou aspirantes a escritores, David Halberstam costumava dizer, e recomendar, em suas palestras e conferências nos Estados Unidos, três coisas que lhe pareciam importantes no ofício de escrever:
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‘O escritor deve ser como um dramaturgo – colocar gente e idéias no palco, fazendo com que o leitor se transforme em público.’**
‘Ser um profissional é fazer as coisas de que gostamos, nos dias em que não temos a menor vontade de fazer coisa alguma.’**
‘Meus livros sempre foram o resultado da minha própria curiosidade: as questões que esclareço para outras pessoas são as mesmas que respondo a mim mesmo.’******
Jornalista e escritor