Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Siroco, um senhor jornalista

Autor de inúmeras façanhas e temeridades, uma delas foi a de tirar este observador do clube de críticos de cinema & cinéfilos que se reunia todas as noites na Leiteria Alvadia, na Cinelândia carioca, e transformá-lo em repórter da revista “Visão”. A alcunha, aparentemente fabricada na exígua redação do quinzenário, somou-se às outras, uma delas de autoria de Joel Silveira (ele próprio apelidado de “víbora”) — “Foca Zero”.

Nahum Sirotsky / FotoWikimedia - Creative Commons

Nahum Sirotsky / FotoWikimedia – Creative Commons

Ambas perfeitas. As antigas redações, quentes e desarrumadas – ao contrário das contemporâneas, ventiladas, vazias, como drones, não-tripuladas — produziam as mais afiadas línguas bem como os mais atilados repórteres e talentosos panfletários

Um furacão: a imagem do clássico Chefe-da-Reportagem tomando providências, dando ordens e batucando na enorme Remington as instruções (hoje chamadas pautas). Às vezes acendia o cachimbo, puxava algumas baforadas, desistia – não era fumante.

Aos 27 anos, basta cabeleira, vozeirão de baixo profundo (imitava muito bem Paul Robeson e Boris Chaliaplin), embora paulistano de nascimento, um garotão gaúcho, simpático, emotivo, envolvente e algo indefeso, preocupado apenas em cumprir bem as suas tarefas. Um gato, diriam dele as estagiárias de hoje, mas ali na Avenida General Justo, em frente ao Santos Dumont e ao lado do escritório da Time-Life só havia marmanjos, De saias, apenas a diagramadora americana Mary que mal falava português. O que não seria problema para o Nahum, dono de enorme fluência em americanês.

Da chefia da reportagem de “Visão” pulou para diretor de redação da “Manchete”, outra temeridade considerando a alta rotatividade que emanava da empresa e envolvia o cargo (desde a fundação, quatro anos antes, haviam passado pela direção do semanário três consagrados profissionais).

Também não esquentou a cadeira, mas preparou a revista para o grande salto que lhe imprimiria outro gaúcho, Justino Martins: abriu suas páginas para grandes reportagens e grandes fotos, empurrando as colunas e o beletrismo então dominante para a abertura e final da edição.

Nova temeridade em 1959: convidado por um dos sócios da Editora Delta (ex-Guanabara), Simão Waissman, aceitou o desafio de fazer uma luxuosa revista mensal, verdadeira joia gráfica e intelectualmente sofisticada. Em “Senhor”,  Nahum reuniu um dos melhores times de escritores, jornalistas, designers, artistas plásticos, humoristas e ilustradores. Um marco na história do nosso jornalismo e nossa cultura, legítimo antecessor da “Piauí”.

A magnífica experiência durou apenas três anos (1958-1961), as coleções da “Senhor” são hoje disputadas em sebos e antiquários, porém nos relatos e necrológios sobre a revista aparecidos recentemente percebe-se um viés preconceituoso: como jornalista puro-sangue que começou como contínuo na redação da vibrante “Diretrizes”, Nahum não era considerado “intelectual”, assim os atributos da revista que inventou e dirigiu com tanto empenho ficam parecendo obra de alguma entidade-fantasma ou de uma conspiração dos seus colaboradores.

Tal como o tio, Samuel Wainer (irmão da mãe, Dona Rosa), Nahum sempre foi um excelente criador de equipes, tinha o chamado olho clínico, sabia escolher e articular o conjunto de talentos capazes de fazer bom jornalismo. Não competia, deixava fazer — aptidão hoje obsoleta e rara. O que talvez explique alguns mistérios do fazer jornalístico contemporâneo.

Sua última coluna (para o portal do iG onde colaborava há alguns anos) chegou pontualmente na sexta, 27/11. Prejudicado por problemas na vista, ditava os comentários sobre política internacional ao sobrinho Nelson Burd, que o visitava semanalmente em Tel-Aviv.

O cálido Siroco amainou subitamente na madrugada de domingo, duas semanas antes de tornar-se nonagenário. Enterrado na mesma tarde, não muito longe dali, em Petach Tikva. 

Alberto Dines

***

O professor Nahum

Perdi um professor. Era assim que eu chamava Nahum Sirotsky, veterano jornalista que tinha mais de 70 anos de carreira. Nahum, para mim, era professor porque com ele aprendi muito sobre o jornalismo, nossa profissão comum. Em sua casa, quando eu era apenas um “foca”, do alto de sua experiência Nahum lia e descartava textos meus, dando com seu jeito ímpar dicas de estilo que adoto até hoje, mais de dez anos depois. Aprendi com ele, sobretudo, a paixão pelo jornalismo. Ontem perdi um professor.

Quando conheci o Nahum, eu estava perto de me formar. Tinha 23 anos e muitas ideias na cabeça quando desembarquei pela primeira vez em Tel Aviv, com três números de telefone anotados em uma agenda. Um deles era o do Nahum. Liguei receoso, achando que ele não receberia um “foca”. Mas estava enganado: ele me convidou para um café e acabei ficando dez dias hospedado em seu apartamento, visitando sua família e ouvindo fascinado suas histórias, que meses depois transformei em meu TCC (trabalho de conclusão de curso).

Ele relatava, apaixonado, episódios de coberturas, da pedrada que levara no joelho na Cisjordânia, de quando fora torturado por engano no Brasil, do discurso de Getúlio Vargas que perdera por precisar correr para o banheiro. Enquanto eu o ouvia, tentava convencê-lo de contar as histórias em um livro, mas ele se recusava. “Sou desimportante”, dizia. Quando finalmente o convenci e ele topou me contar “causos” para meu TCC, Nahum me advertiu: “Não exagere, minta o menos possível. Não me transforme em herói nem em paradigma. Sou apenas um jornalista que tem 60 anos de profissão, que amou a vida inteira e que fez algumas coisas que ficam”.

Nahum amou a vida inteira. Amou sua mulher, a atriz Beyla Genauer. Amou o filho Yossi. Falava dos cinco netos com uma paixão rara de ver mesmo em pais que falam sobre os filhos. Amou, sobretudo, a vida que o jornalismo lhe dera, “meio por acaso”. Nahum era apaixonado pelo jornalismo, pela busca dos fatos, pelo bom texto, pela análise. Levava sempre consigo um radinho de pilha em que acompanhava as notícias de Israel, do Brasil e do mundo. Em casa, a TV ficava sempre ligada, em um volume que devia incomodar os vizinhos.

Nahum navegava na internet com a destreza de um jovem. Chegou a fazer podcast e blog. Escrevia quase todos os dias. Mais recentemente, sem conseguir enxergar, ditava textos que eram publicados em uma página no Facebook – o último texto saiu dois dias antes de morrer. Nahum era multitarefa e informado. Conversava sobre qualquer assunto com conhecimento de causa: tinha sempre o que dizer.

Acordei ontem com a triste notícia vinda pela internet nas palavras de Judith, sua neta mais velha: “Nosso avô Nahum morreu”. Ela não usou “nosso” à toa. Sabia que, para mim, além de professor, Nahum era como um avô. Era assim que nos tratávamos: ele me apresentava como um neto brasileiro que, além de neto, tinha a sorte de ter a mesma profissão que ele.

Hoje, mexendo em coisas antigas, encontrei uma carta de despedida que escrevi quando deixei Israel, em 2011. Israel, para mim, tem muito a ver com o Nahum. Aprendi muito com ele sobre o país, sua complicada política, as pessoas, o jeito de ser do israelense. Lembro de uma coletiva a que fomos juntos com o Benjamin Netanyahu, que hoje é premiê mas na época era candidato de oposição. No meio do discurso engessado, Nahum se levantou e indagou o político, que ficou bastante incomodado.

Na minha carta de despedida, eu lembrava da época em que eu digitava os textos dele e ele criticava os meus, “de como me orgulho daqueles dois ou três textos que escrevi quando estava na tua casa, que ficaram tão profissionais e, ao mesmo tempo, humanos. Aprendi o jornalismo com você. Cada dica, cada papel amassado com um texto ruim, cada entrevista que fizemos juntos”.

Num 29 de novembro, em 1947, Nahum cobriu a partilha da Palestina britânica votada pela ONU. Tinha pouco mais de 20 anos. Por muitas vezes, ele me relatou a história daquela cobertura, com lágrimas nos olhos. Em 2015, a poucas semanas de completar 90 anos, Nahum se foi, também num 29 de novembro. O jornalismo, que anda tão manco e sem referências, perde um grande nome. Eu perco um professor e um avô. E, por mais que ele não gostasse, um herói.

Gabriel Toueg