Esta semana estreia um filme sobre um homem só, sem ator da Globo nem cena de sexo. Um documentário sobre o amazonense Cosme Alves Netto que viveu a vida para garimpar, preservar, esconder dos censores e divulgar a cinematografia, em especial os filmes brasileiros. Tudo Pelo Cinema é obra de um conterrâneo de Cosme, o cineasta Aurélio Michiles, que o define como O Caçador de Imagens num relato pessoal publicado no suplemento Ilustríssima (FSP, 26/07). Ali Michiles conta como Cosme era capaz de sair desabalado no seu fusquinha branco em busca de lotes de latões de filmes de 35 e 16 mm desovados, por exemplo, nos quintais da Marinha depois de apreendidos pela Censura. E assim salvou grande parte da nossa memória cinematográfica.
O documentário mostra um rapaz atormentado para saber como é a vida e a morte de um filme, onde foram parar os filmes que ele gostava de assistir na infância. Esse afinco, que durou toda sua vida (1937-1996), nos valeu hoje a Cinemateca do Museu de Arte Moderna carioca onde esteve à frente desde os anos 60, mimeografando a programação, caçando latas de filmes nas embaixadas e nos grandes estúdios como Paramount, Warner que deveriam destruir pelo menos quatro cópias de filmes por mês — mas uma dessas ía para as mãos de Cosme.
Cinemateca como forma de resistência cultural era como Cosme enxergava seu trabalho. Acreditando que filme não deve apenas ser arquivado, mas exibido, em março de 1964 Cosme exibiu Encouraçado Potemkim de Eisenstein para a rebelião de marinheiros do Rio de Janeiro e ficou fichado pela ditadura—o que lhe custou duas penosas prisões e muita tortura.
Teria custado mais algumas se a ditadura soubesse que o seu alentado caderninho de endereços de todos os “subversivos” cinéfilos do Rio ficou escondido justamente debaixo de uma das almofadas do Cenimar (Centro de Informações da Marinha, na Ilha das Flores) durante os seis meses em que ele ficou preso, o tesouro recuperado na saída, no mesmo sofá onde se sentou ao entrar, e cuidou de ocupar a mesma almofada ao sair.
Pior, se os gorilas soubessem que os perigosos negativos do filme de Eduardo Coutinho Cabra Marcado Para Morrer, interrompido pelo golpe em 1964 e só retomado no início dos anos 80, ficaram “escondidos” na Cinemateca num latão com o título A Rosa do Campo.
A geração Paissandú
Um dos principais pontos de encontro de cineastas naqueles anos de chumbo, além da porta da Líder cinematográfica e do Beco do Filme, a Cinemateca era frequentada por Alex Vianny, Julio Bressane, Cacá Diegues, Sergio Augusto, Fabiano Canosa, Joaquim Pedro, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e todos os intelectuais como Paulo Emilio Salles Gomes visados para frequentar o xilindró da ditadura porque pensavam e faziam pensar. Ali se exibia, discutia, distribuía memória visual, cultura, e pensamento crítico que ía parar na porta do famoso cinema Paissandu no final dos anos 60 até 70. Ali se criou a famosa geração que fazia filas nas sessões de sexta e sábado das 22 horas e meia noite para garantir que assistiria ao filme prestes e ser vetado pela censura.
A cadeia não intimidou Cosme que continuou a caçar filmes brasileiros ou rodados no Brasil nas cinematecas do mundo inteiro como a de Paris, onde o diretor era feito da mesma massa que ele, Henri Langlois, treinado na arte de esconder filmes até debaixo da cama durante a ocupação nazista. Cosme pescava e repatriava material na República Checa, e salvou nos arquivos da Finlândia a única cópia de um filme sobre o Rio de Janeiro rodado em 1923 pelos irmãos Botelho.
Cosme se livrou da ditadura mas a ditadura não se livrou dele: em 1978 um fogo criminoso destruíu o MAM carioca com o objetivo de acabar com o reduto dos intelectuais. Queimou toda o acervo de um dos mestres da arte uruguaia, Torres Garcia. Mas como mostra a câmera de Walter Carvalho, o único canto intocado do Museu foi a Cinemateca. Construída como bunker para não permitir que o material de nitrato altamente inflamável contaminasse as obras de arte caso um dia fosse apanhado pelo fogo. O fogo começou do lado de lá, a Cinemateca ficou intacta, inclusive conservando a filmadora que o crítico José Carlos Avellar guardava ali onde trabalhava, e não pôde registrar o estrago do incêndio.
Cosme e sua turma continuaram a frequentar os festivais do mundo inteiro, inclusive os de Havana, mesmo que os passaportes contivessem o carimbo “não é válido para Cuba”. Mas eles íam, Cosme de charutos e guayabera influindo e divulgando a cinematografia latino-americana.
“Meu coração está preso por um película de nada”, disse, num registro do documentário de Aurélio Michiles, quando descobriu que 35% do seu coração estava fibrilado. E quatro dias antes de morrer, na última entrevista a Antonio Abujamra, o ativista, articulador, aglutinador cultural lastimava ter arquivado tantos filmes…”Mas não tenho tempo de ver nenhum”
Um documentário como esse é quase um oásis nos circuitos de final de férias de julho. E mais ainda ver a reação da imprensa que não ficou só no registro pessoal do autor do documentário na Ilustríssima de domingo. Amir Labaki dedicou uma página à Cinefilia de Cosme Alves Netto no caderno Eu & Fim de Semana do jornal Valor (24/07) e Sergio Augusto, uma coluna no Caderno 2 de sábado (OESP, 25/07), Por Amor ao Cinema.
Os 10 filmes preferidos de Cosme Alves:
1. Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952, dir. Gene Kelly)
2. Encouraçado Potemkin ( Bronenosets Potemkin, 1925, dir. Sergei Eisenstein)
3. Cidadão Kane (Citzen Kane, 1941, dir. Orson Welles)
4. Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, dir. Glauber Rocha)
5. Hiroshima, Mon Amour (1959, dir. Alain Resnais)
6. Rashomon ( 1950, dir.Akira Kurosawa)
7. Milagre em Milão ( Miracolo a Milano, 1950, dir. Vittorio de Sica)
8. Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, 1946, dir. John Ford)
9. A Noite de São Lourenço (La Notte di San Lorenzo, 1982, dir. Paolo e Vittorio Taviani
10. Vidas Secas( 1963, dir. Nelson Pereira dos Santos)