Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um ano sem o Apollo Natali: pelo menos ele não viveu para ver a abominação que o Brasil se tornaria…

(Foto: Reprodução Facebook)

Publicado originalmente no blog Náufrago da Utopia.

Como diria o Caetano Veloso, em 1936 o Apollo Natali nasceu bem na barriga da miséria (o bairro da mãe do seu pai, a vovó do Bixiga), conforme contou numa crônica:

“Convivi com a italianada de um punhado de cortiços na fronteira entre o Brás e a Mooca, em São Paulo, nas ruas Coronel Cintra, rua da Mooca, Caetano Pinto, Carneiro Leão.

Eu mesmo vivi 33 anos, desde bebê, num cortiço na Mooca, na rua Coronel Cintra, 129, habitado por vinte famílias de ruidosos italianos e suas briguentas crianças. Minha meninice lá foi marcada pela música Marechiare, pelo rádio de Tzi Terê e vozerio de Gino Bechi”.

Depois, mudou-se para o bairro da avó materna, a vovó do mato, onde passava temporadas na meninice e onde passaria o resto dos seus anos:

“Vila Ré é o nome do bairro de subúrbio onde moro, na Zona Leste paulistana…

Quando eu era menino, tinha trem de verdade, puxado pela maria-fumaça. Ia gente no telhado e em cima da lenha da locomotiva. Tempos livres, aqueles. Viajava-se de janelas abertas nos vagões de madeira e muitos iam no trem sem pagar. O preço da passagem não aumentava nunca…

Era tudo mato. Uma casinha aqui, outra ali, alguns índios, tanto tempo faz. Árvores para seis homens abraçarem, tanto cheiro de capim. Às cinco horas da tarde, todo mundo se recolhia. Dava medo o escurecer sem ninguém”.

A família, imensa. “O vovô e a vovó do Bixiga tiveram 24 filhos. O vovô e a vovó do mato tiveram dezessete.”

Naquele tempo, os pais botavam os meninos para trabalhar desde muito cedo. E o Apollo, nas suas andanças pela cidade (se bem me lembro, fazia entregas de pequenos volumes), certa vez conheceu a velha redação de O Estado de S.Paulo, na rua Major Quedinho.

Ficou fascinado, até porque havia vendido jornais pelas ruas durante muito tempo (também fora engraxate). Com talento precoce para a escrita, decidiu que era aquilo que queria ser na vida.

Foi se aproximando, oferecendo serviço, mostrando textos. Deram-lhe algumas reportagens fáceis para o testarem. E foi ficando, quebrando galhos, preenchendo lacunas.

Acabou incorporado à equipe da edição de Esportes do Jornal da Tarde, que saía às segundas-feiras e era uma grande atração do então florescente vespertino. Mas sem registro, embora recebesse uma remuneração mensal. Coisas do capitalismo.

Pobretão, humilde, afável, dedicado, era o colega que todos tinham vontade de ajudar. E a oportunidade de efetivá-lo que surgiu era daquelas que ninguém recusaria: cobrir o circo da Fórmula 1, indo de país em país para descrever os preparativos de cada etapa, as provas em si, as coletivas no encerramento.

Seria um presente dos céus para qualquer um, menos para o Apollo. A ideia de ficar longe dos pais e da família enquanto perambulava pelo mundo como um cigano o horrorizou. Deixou a chance passar.

Gostava mesmo é do batente de redação. Lembrava com orgulho de seu espírito de iniciativa quando as tropas do general golpista Olympio Mourão Filho começaram a se movimentar em direção ao Rio de Janeiro no funesto 31 de março de 1964.

Foi o primeiro a ler o despacho do correspondente do Estadão em Juiz de Fora e, de imediato, se deu conta da importância da notícia: foi entregá-lo diretamente nas mãos do doutor Júlio [Mesquita, o patrão], avaliando que a urgência o autorizava a não respeitar os degraus hierárquicos.

Fundada a Agência Estado, em 1970, finalmente se tornou jornalista com carteira assinada, fazendo exatamente o que queria e amava.

Mas, com o tempo, iria caindo na real. Nem a pena movia montanhas amiúde, nem apenas o bom desempenho conduzia alguém sem protetores influentes ao topo da profissão.

Uns dezessete anos depois, caiu-lhe outra ficha: a de que seu trabalho na sub-chefia (abaixo apenas do chefe da redação, Sircarlos Parra Cruz) lhe rendia apenas uma merreca a mais do que ganhavam os redatores comuns e o obrigava a esticar o expediente por várias horas que não lhe eram pagas.

Pediu aumento e, quando mesquinhamente o negaram, optou por abrir mão da sub-chefia e receber um pouco menos para ter muito mais tempo livre. Mas não era a solução que almejara. Suas mágoas ainda eram grandes quando o conheci, em 1988.

Foi um caso de amor à primeira vista… pelos textos que escrevi no processo de seleção. Incumbido da escolha do melhor candidato, o Apollo decidiu por mim. E, quando houve resistências em função do meu passado guerrilheiro, ele (sem me conhecer) afiançou que isto não seria problema. Só vim a saber muito depois.

Tornamo-nos amigos, algo previsível em função das muitas afinidades que tínhamos, como jornalistas e como pessoas. Inclusive a de ele ser kardecista e eu haver passado uns seis anos da minha meninice frequentando um centro espírita com minha mãe. Então, mesmo tendo deixado as religiões de lado, eu entendia os papos dele sobre o espiritismo e podia trocar ideias com conhecimento de causa.

Quando estava prestes a estrear A última tentação de Cristo, que causara muitas polêmicas pelo mundo, eu recebi convite duplo para a pré-estreia, pois continuava escrevendo sobre cinema para algumas revistas.

Levei o Apollo e percebi que lhe deu enorme satisfação conhecer aquele círculo sofisticado e poder depois conversar com os colegas da redação sobre um filme que ainda não estava em cartaz e nenhum deles assistira.

Era singela sua reação, um homem vivido, quinze anos mais velho do que eu, que se fascinava com aquilo que, para mim, virara rotina há muito tempo. Tal encantamento de menino, fui percebendo, era uma característica sua, daí estar quase sempre de bem com a vida, espalhando boas vibrações ao seu redor.

Já marchando para a aposentadoria, lá pelos seus 55 anos, tomou a temerária decisão de demitir-se para dar assistência ao pai, que estava no final da vida. Disse-me que o velho era pesado e suas duas irmãs não aguentariam carregá-lo para o banheiro, além de ser uma situação constrangedora para as duas partes.

[Apesar de nunca lhes ter sobrado dinheiro, poderiam contratar um enfermeiro, claro. O que o Apollo queria, sobretudo, era dar amor e consolo ao pai nos meses finais. Talvez tenha evitado reconhecer isto por recear que soasse piegas.]

O FGTS foi suficiente para bancar o quase um ano que ele passou cumprindo, em tempo integral, o dever de bom filho.

Óbito consumado, já não havia emprego à sua espera na Agência Estado, nem em redação nenhuma. O máximo que conseguiu foram uns frilas encomendados pela assessoria de imprensa de um amigo e um tempinho trabalhando no serviço de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, cujo titular era… o Michel Temer!

Não tinha prazer em falar desta última fase. Só me lembro de haver contado com mais detalhes um único episódio. Certa vez, durante uma coletiva, um repórter aparentemente bêbado começou a interpelar o Temer de forma muito ofensiva. Quando a paciência do amigo da onça chegava ao fim e ele parecia prestes a recorrer aos seguranças, o Apollo interveio.

“Deixe, que eu resolvo a situação”, disse baixinho ao Temer. E, com seu jeitão bondoso, convenceu o esquentadinho a ir tomar café com ele lá fora.

Era como sempre agia quando os ânimos esquentavam na redação: um apaziguador, que permanecia equidistante das partes e ia de uma à outra para aparar arestas e facilitar a reaproximação.

Depois de dois ou três anos tentando ainda sustentar-se como jornalista, curvou-se à evidência dos fatos. Já ouvira as desculpas dos muitos conhecidos e quem não o conhecia tendia a negar-lhe emprego por considerá-lo velho demais ou pela sua aparência humilde e roupas baratas.

[Jornalistas da velha-guarda esmerávamos-nos em conseguir furos e/ou redigir textos cada vez melhores, não dando muita bola para trajes nem para certificações formais, o que nos fazia mal-vistos pelos selecionadores profissionais.

Lembro-me de um que me perguntou que prato eu escolheria num cardápio em inglês e, claro, acabou aprovando um concorrente à mesma vaga. Tratava-se de um colega que eu conhecia de outros carnavais e, tão bem vestido quanto bem falante, travava quando incumbido de textos urgentes e importantes. Já o Apollo e eu os tirávamos de letra…]

A falta de reconhecimento dos seus méritos não derrubava o Apollo; tocou a vida, trabalhando até como pedreiro, mecânico e corretor de imóveis. Enquanto as irmãs (ambas professoras, uma delas diretora de escola) estavam na ativa, viviam um pouco melhor. Quando elas se aposentaram, os três tiveram de apertar mais um pouco o cinto. Mas seguiram adiante.

De quebra, Apollo realizou o antigo sonho de obter um diploma de jornalismo – que não lhe fora necessário para o exercício da profissão, pois nela já atuava quando o curso se tornou obrigatório para os ingressantes na carreira.

Mesmo sem esperança nenhuma de voltar ao jornalismo diário, passou quatro anos nas Faculdades São Judas Tadeu e, septuagenário, graduou-se brilhantemente.

Remoçou uns cinco anos nessa fase. Dava-lhe imenso prazer iniciar os meninos (seus colegas) nas práticas e segredos da profissão. E familiarizou-se com a internet, passando a usar e-mails para espalhar seus textos entre as dezenas de jornalistas que conhecia.

Foi colaborador de blogs da jornalista carioca Ana Helena Tavares, como o Quem tem medo da democracia?; depois, dos meus.

E andou bancando impressões baratas dos seus textos, que entregava de graça para moradores de rua venderem. Uma pequena contribuição, mas a única que estava em condições de dar, para a subsistência dos excluídos.

Estaria bem melhor financeiramente não fosse a insensibilidade de burocracias kafkianas como a do INSS, que negou-lhe aposentadoria integral porque… ela própria perdeu (e admitiu ter perdido) as provas que o Apollo anexou ao processo no qual a pleiteava, relativas a quase uma década que trabalhou sem registro nas empresas do Grupo Estado!

[Mesmo se o extravio tiver mesmo sido acidental, a aceitação dessa tese abriria um precedente juridicamente aberrante, pois os reclamados poderiam dar sumiço em tudo que lhes causasse problemas…]

Indignava-se, mas não perdia o sono, quando recebia más notícias sobre seu pleito; no dia seguinte, irradiava a costumeira alegria de viver.

Não podia comprar roupas? Aceitava de bom grado as que um sobrinho dispensava por estar crescendo rapidamente.

Sua lata-velha lhe acarretaria multas se com ela trafegasse pela cidade? Passou a usá-la só no próprio bairro, até que nem para isso servia mais. Não tinha grana para comprar outro carro? O cartão de idoso lhe bastava…

Só superestimou sua resistência a doenças, até porque parecia imune a elas. Então, jamais se preocupou em ter um convênio de saúde, nem deixou os amigos e conhecidos saberem que não possuía nenhum. Octogenário, sem fazer exames periódicos, foi surpreendido por um câncer de medula que se alastrou rapidamente e o matou em três meses.

O que mais ouvi dos presentes ao velório e ao enterro foi que só então perceberam, em toda sua extensão, a falta que o Apollo faria em suas vidas. Talvez porque, eles como eu, tínhamos a impressão de que estaria sempre ao lado, alegrando-se conosco nos bons momentos e ajudando-nos a superar os maus.

Quando o caixão baixou à terra, nenhum de nós tinha a ilusão de que encontraria adiante quem cumprisse o mesmo papel. Era insubstituível.

Enquanto o Apollo era vivo, nunca me ocorreu ter de explicar a quem não o conhecia por que, afinal, tratava-se de uma pessoa tão diferente, exemplar de uma espécie quase extinta nos tristes tempos presentes.

Fui, infelizmente, obrigado a fazê-lo nos dias seguintes àquele devastador 31 de julho. E o que me veio à mente foi a lembrança de uma cena emocionante de Irmão Sol, Irmã Lua (direção de Franco Zeffirelli, 1972), quando o papa Inocêncio III muda a atitude da Igreja com relação a São Francisco de Assis, acolhendo-o e afirmando: “Em nossa obsessão com o pecado original, às vezes nos esquecemos da inocência original”.

Não que se trate de um grande filme, longe disso. Mas é um trecho que impacta. Ademais, o despojamento e a frugalidade franciscana eram características marcantes do Apollo, um kardecista que talvez nem se desse conta disso, pois jamais me disse uma palavra sequer sobre os santos católicos.

Outra afinidade: sua visão religiosa era bela e pura, como se constata na crônica (vide aqui) em que comparou nosso sistema solar a uma árvore de Natal e se referiu ao Cristo como “pixotinho judeu aniversariante”.

Foi um dos melhores cronistas que algum dia li. Não fazia má figura como repórter, noticiarista, redator, editorialista e editor, mas nas crônicas se superava. Percebia-se nele um homem que sempre convivera com as pessoas simples, conhecia profundamente a realidade das ruas, a tudo observando com olhar compassivo, solidário à dor dos humildes e sempre disposto a ajudá-los no limite de suas forças e recursos.

Por suas crônicas desfilam personagens inesquecíveis:

– o intelectual de rua Cláudio Bongiovani (vide aqui), químico formado, que perdeu a família num acidente automobilístico e passou a vagar sem rumo, até se tornar o personagem exótico que hoje vende revistas de uma entidade de ação social e consegue ter pelo menos um teto modesto para chamar de seu;

– sua avó materna (vide aqui), que respondia com amor cristão às infidelidades do marido, a ponto de não hostilizar a amante que este ousou um dia trazer para pernoitar em casa (“A minha santa vovó do mato era de outro planeta, embora fosse mulher, mulher, mulher, mulher, meu Deus do céu! O que outra mulher teria feito no lugar dela? O que todas as outras mulheres fariam no lugar dela?”);

– o bombardeiro Francisco Romero (vide aqui), que teria deixado de alterar o curso da nossa História ao desarmar a bomba por ele próprio plantada no vagão do trem em que viajaria um ditador, sem que ninguém ficasse sabendo do episódio afora os companheiros de quase-atentado;

– a Júlia Sapeca (vide aqui), nome que emprestou de uma música da época para renomear a menina inspiradora de sua primeira e frustrada paixão, pois, apesar das mágoas de outrora, continuou sendo cavalheiro pela vida adentro e seria “grosseiro” identificar claramente quem se tornara mãe e avó, com “cabelos branquinhos, branquinhos”, que ele reviu um dia “subindo uma ladeira, bem devagar, se segurando nas paredes”.

E tantos outros, reais, inventados e até meio a meio, como as crônicas do além em que nos colocou em contato com os espíritos de Tancredo Neves (vide aqui), Getúlio Vargas e Carlos Lacerda (ambos aqui).

Sua imaginação voava alto. É uma graça, por exemplo, a crônica (vide aqui) na qual ele propôs uma revolução diferente para o Brasil, uma revolução de costumes políticos, cujo hino fosse… La cucaracha!

Assim como o discurso que ele se imaginou proferindo no STF (vide aqui), com direito a puxão nas orelhas dos meritíssimos:

“Ouçam o lamento de um povo, supremos ilibados juristas, o lamento de todo um povo, e derrubem já o foro privilegiado”.

Era uma das guerras santas do Apollo, que queria ver a igualdade de todos perante a lei prevalecer sobre o corporativismo dos altos serviçais da classe dominante.

Outra, a defesa da necessidade do diploma para o exercício da profissão de jornalista, que lhe inspirou candentes catilinárias. E não só, pois numa delas (vide aqui) o Apollo revelou:

“Desde a traumatizante decisão do STF que derrubou a obrigatoriedade, venho manifestando em prosa e verso meu tormento com aquela postura cavernosa do tribunal maior do país.

Meus mais aflitivos lamentos em defesa da obrigatoriedade do diploma de jornalismo traduziram-se no envio de mais de 600 cartas a cada um dos oitenta senadores, 520 deputados federais e às mesas diretoras do Senado e da Câmara”.

Ele acreditava que mandar uma carta pelo correio impactava mais do que o envio de e-mails. Chegou até a escrever uma crônica (vide aqui) em louvor às cartas manuscritas de outrora.

Botava tanta fé na força de suas palavras datilografadas na folha em branco, com assinatura no final, que nunca tive coragem de dizer-lhe que a quase totalidade dos parlamentares, juízes e membros do Executivo delega a subalternos a abertura da correspondência.

Estes raramente colocam na mesa do chefe as mensagens esperançosas ou aflitas de cidadãos para eles desconhecidos. Dão mais importância a um vereador de Santa Cruz de Minas (o menor município do Brasil) do que ao autor de um texto magistral como os do Apollo…

Muitas cartas ele remeteu na década passada, esperando conseguir que fosse rapidamente reconhecida minha condição de perseguido político durante a ditadura militar; na década atual, para que parassem de boicotar, com manobras protelatórias, o recebimento de uma indenização retroativa que o ministro da Justiça me concedera (deveria ter sido paga em sessenta dias e, mais de uma década depois, ainda não o foi).

Era amarga a decepção dele quando, a mando de ministros e até da presidente da República, algum burocrata empedernido respondia com desconversa, saindo pela tangente e até fingindo não haver entendido direito o que estava bem claro na mensagem do Apollo.

Eu, que dessa gente só esperava o pior, absorvia facilmente o golpe. Ele, que sempre esperava o melhor das pessoas, não se conformava ao ver-lhes a pior face: a verdadeira.

Também me comovia seu desencanto com os rumos do jornalismo, a ponto de haver dito certa vez que não lamentava tanto terem impossibilitado sua readmissão na Agência Estado após a morte do pai, pois não se identificava com a nova realidade das redações (em que os ganhos tecnológicos chegam junto com a perda do idealismo e o embotamento da solidariedade para com os indefesos).

Eis um trecho da pungente crônica (vide aqui) na qual lamentou o fim de uma de suas mais caras ilusões:

“Eu acreditava ter a imprensa o poder de transformar a realidade. Tal era minha ingenuidade!
Oh, que saudade da minha infância querida e ingênua, do meu tempo das reportagens, editorias e fechamento de páginas na redação, em que me sentia um rei ao fazer o feijão com arroz que o patrão mandava.

Seis décadas depois, a constatação amarga e definitiva de que a humanidade (leia-se políticos) não presta. Jamais fui apresentado a nenhum dos dois honestos. É a confirmação acadêmica de que o exercício do jornalismo não muda a realidade. Dá vontade de desistir. Eu juro!”

Muito eu ainda poderia escrever sobre o grande amigo e o jornalista por vocação e teimosia, que tantas barreiras transpôs para chegar aonde sonhara, sem, contudo, jamais obter reconhecimento à altura do seu enorme talento.

Mas, nas redações e na vida, tudo tem um fim. E eu temo que, se alongasse este tributo, haveria cada vez menos leitores a acompanhá-lo, salvo nossos contemporâneos, os idosos.

Pois o Apollo teve uma grandeza característica de outros tempos, quando os homens cordiais eram admirados e o mundo inteiro admirava nosso país; hoje, no Brasil das balas perdidas e das pessoas perdendo a cabeça por superfluidades, os Narcisos engendrados pela sociedade de consumo cada vez mais preferem viver só o presente, sem compromisso com o futuro de sua gente e achando tedioso o passado.

Eu, Celso Lungaretti, desta vez coloco fora de lugar a minha assinatura, antecipando-a por um bom motivo: a palavra final só poderia pertencer ao Apollo!

Fui buscá-la numa crônica simplesmente maravilhosa (vide aqui), em que ele fala de “uma florzinha roxinha meio azulada grudada no chão do meu portão” e de “uma passarinha mãezinha que recolhe migalhas de pão no chão e deposita no bico do filhote”. Eis os parágrafos finais:

“Florzinha, pardalzinho, ouçam, eu também entro e saio da minha casa todo santo dia, e vai chegar um momento em que vou entrar e não vou voltar mais. A mando de um poder maior, chega também para mim o tempo de ir embora. Saio carregado por quatro mãos agarradas àquelas alças douradas, sagradas, que sustentam corpos sem vida.

Mas não vai terminar nunca a festa de cores e de vida intensa na companhia desses meus amiguinhos.

Quando eles voltarem amanhã e tornarem a encher de alegria meu velho coração, vou correndo fazer um pedido aos dois.

Pedir que supliquem ao poder maior para deixar-me encontrar com eles no outro lado da vida, em algum portão, alguma parede velha aconchegando uma flor roxinha-azulada-princesinha, alguma escada encurvada para mamãe passarinho subir…”

***

Celso Lungaretti é jornalista, escritor e editor do blog Náufrago da Utopia.