Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um encontro com o artista

‘Je vais vous recevoir, mais je vous donnerai pas d’interview’ (Vou receber o senhor, porém não darei entrevista’).

Foi com essas palavras que Henri Cartier-Bresson marcou, pelo telefone, um encontro para uma conversa informal em sua casa, dali a alguns dias. Aceitei, obviamente, as regras do jogo. Que jeito? Estávamos em Paris, na primavera de 1977, e eu tinha a firme convicção de que poderia escrever uma razoável matéria sobre o maior fotógrafo do mundo. E lá fui eu.

Eu nunca tinha visto o seu rosto. Nem eu nem ninguém, quase. O fato é que Cartier-Bresson não se deixava fotografar. Afinal, o fotógrafo era ele… Mais: o homem tampouco dava entrevistas.Tudo muito complicado, realmente. Abrira uma exceção para mim e isso por dois motivos. Primeiro, eu o havia contatado em nome de um fotógrafo amigo, Alécio de Andrade, brasileiro que pertencia à Agência Magnum, fundada pelo próprio Cartier-Bresson, no pós-guerra. Depois, eu respondia pela revista Módulo, em Paris. A revista era dirigida por Oscar Niemeyer. E o nome de Oscar Niemeyer abre qualquer porta, como sabemos. Tive sorte, muita sorte. Acertar também é humano.

Do lado esquerdo

Era um belo apartamento, amplo, claro, arejado, localizado em frente ao Jardin des Tuileries, na imponente Rue de Rivoli, não muito longe da Praça da Concórdia. Uma vista belíssima, que a janela emoldurava. E lá estava Cartier-Bresson, um rosto que finalmente pude observar e que me surpreendeu pela sua jovialidade. Homem de gestos calmos, cordial, Cartier-Bresson não se abalaria sequer com a correria promovida pelo filho ainda pequeno em volta da sala. Martine Franck, sua mulher, também fotógrafa (e excepcional profissional), se encarregaria de capturar o guri, deixando-nos tranqüilos para conversar.

Eu me recordo que havia estatuetas e máscaras africanas espalhadas pelos quatro cantos da sala, como a lembrar que o seu proprietário viveu um dia de suas caçadas na África. Pois Henri Cartier-Bresson, após abandonar as aulas de desenho com o tio André Lhote, se radicara por alguns anos nas savanas africanas, onde ganharia o sustento como caçador de elefantes. Aventureiro, saiu à procura de marfim. No começo era o dedo no gatilho – talvez o futuro fotógrafo tenha apurado aí a precisão do seu olhar. A sua mira, precisamente.

Cartier-Bresson falou então do seu trabalho e da sua vida em geral. Sempre de maneira informal. Confirmou a origem social (nascera em uma rica família de industriais têxteis). Conhecera os campos de concentração hitleristas e fotografara Berlim exangue, no quadro da bancarrota do regime nazista. Tinha o coração plantado bem do lado esquerdo do peito, nem é preciso dizer. Para ele, a fotografia era o instante. Essa a sua especificidade: registrar, captar o momento em que tudo se dispunha no espaço. Em que o instante virava arte. Cartier-Bresson ou a fotografia como geometria da luz.

Um instantâneo

Cartier-Bresson não admitia o uso da cor. Com ele era preto no branco. Literalmente. E tampouco se valia de lentes especiais (só usava a 35mm) ou filtros, que considerava um artificialismo. Era partidário de uma fotografia crua. E dava um tiro só. Coisas de caçador, talvez. Matar ou morrer.

Depois de quase uma hora de conversa, veio a despedida. Eu ainda falaria com Henri Cartier-Bresson uma ou duas vezes mais, sempre ao telefone. Guardo até hoje comigo um belo texto seu, que reproduzi então na Módulo, com uma anotação sua feita à mão. Foi um dos grandes artistas do século que se encerra, juntamente com Eisenstein, Pablo Picasso, Neruda, Franz Kafka, John Lennon, Giacometti e o próprio Oscar Niemeyer.

O meu encontro com ele está registrado até hoje em minha memória. À maneira de um instantâneo… de Henri Cartier-Bresson.

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Historiador e autor, entre outros, de Memorial dos Palmares, Brasil, 500 anos em documentos e Velho Chico mineiro