Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um político único

A imprensa paulista não reverenciou Mario Soares como deveria. Chamada  de capa em pé de página no Estadão e Folha de S. Paulo este domingo( 8/1)não combina com o político exuberante que foi três vezes Primeiro Ministro (1975-77;1978;1983-85), e duas vezes presidente (1986, reeleito em 1991), usando sempre seu modo destemido de ser para defender os brasileiros quando as coisas azedavam.Principalmente quando a imigração para a antiga Corte aumentou no final dos anos 80e na década de 90 em diante.

O Globo salvou a gaffe do desprezo da mídia com uma página inteira em homenagem a um dos últimos representantes da geração de portugueses que, como Saramago queria, olhava mais para o lado de cá do Atlântico do que para a Europa e nos aceitava como irmãos. O que certamente vem mudando depois da integração de Portugal à União Europeia, feito que se deve aliás aos esforços de Mário Soares, um europeísta convicto, mesmo depois que a UE mostrou rachas, Brexit, e promessa de evasões.

Corajoso, limpo, peito aberto, uma vida de luta pela democracia, homem público como Mário Soares dá inveja aos brasileiros. Várias vezes sua popularidade arrancava gritos dos brasileiros nas ruas de Lisboa ou nos restaurantes do Rio, São Paulo e Recife que o político e amigo nunca deixou de visitar. “Mário Soares, venha ser presidente do Brasil” , pediam.

A herança política e cultural

Nunca deixou de atender à imprensa estrangeira que reverenciava com jantares regulares e entrevistas — como seria bom o governo brasileiro adotar esse salutar hábito.

Deixou raízes pelo mundo, o político português mais conhecido, e o que mais divulgou Portugal depois da ditadura de Salazar por várias décadas– que ele lutou para derrubar apesar das sucessivas prisões uma dúzia de vezes e do exílio em Paris.

Sempre marcando presença e surpreendendo, foi o primeiro presidente a fazer uma visita oficial às ex-colônias de Goa na Índia e  Macau na China , não se privando de passear sobre tartarugas gigantes em Madagascar ou no dorso de elefantes na Ásia e África. Não se importava com o que pensassem, nem parecia excessivo, ao contrário, tudo o que fazia soava natural e autêntico . Seus discursos uniam, sua presença animava , suas ações revolucionavam.

Mário Soares era único. O Brasil vai sentir o peso desse elo partido nas relações luso-brasileiras estendidas a todas as ex-colônias pela África e Ásia. Sempre que o nome de Portugal for mencionado sua figura vai ser lembrada. O Instituto Mário Soares vai divulgar seus mais de cem livros e outras tantas caricaturas e atos ao longo da vida pública. Um ponto a ser visitado junto, agora, com seu túmulo no Mosteiro dos Jerónimos onde também está a tumba de Camões. O Brasil, mais que todo mundo, vai sentir sua falta .

***
Norma Couri é jornalista e foi correspondente do Jornal do Brasil em Portugal entre 1988 e 1998.