Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um lead canalha

 

A morte do historiador Eric Hobsbawm, no dia 1º de outubro, recebeu, por parte dos telejornais brasileiros, um tratamento que transitou entre a indignidade e o lead canalha, salvo pela exceção que indico a seguir. Hobsbawm, um intelectual de sólida formação marxista, faleceu em Londres, aos 95 anos, legando à humanidade uma vasta obra sobre as transformações provocadas pela chamada globalização – na série “A Era das Revoluções” (do Capital, dos Impérios, e dos Extremos).

Humanista, de origem judaica (nasceu no Egito, em 9 de julho de 1917), Hobsbawm tornou-se um dos maiores intérpretes do seu tempo, do ponto de vista das ciências sociais e humanas. Publicou mais de 30 obras, alcançando reconhecimento internacional. O historiador foi militante do Partido Comunista inglês.

Adjetivos toscos

Na edição do Jornal Nacional (TV Globo), essa figura humana de rara estirpe foi assim traduzida num lead canalha:

Comunista, contestador, intelectual: foi com essas credenciais que Eric Hobsbawm fez história. Analisou profundamente a chamada luta de classes entre patrões e empregados. De herança, deixou várias obras sobre as transformações econômicas e sociais nos últimos 200 anos: ‘A era das revoluções’; ‘A era do capital’; ‘A era dos impérios’; ‘A era dos extremos’. Também escreveu o best-seller História social do jazz. Foi estrela da primeira edição da Festa Literária de Paraty, em 2003. Na época, disse que ‘o maior desafio da humanidade é enfrentar os americanos que acreditam não ter limites’” (grifo nosso).

O texto, da lavra do repórter Marcos Losekann, correspondente da TV Globo em Londres, é de um reducionismo vulgar, que desrespeita a memória do historiador e desqualifica sua contribuição à história do pensamento contemporâneo. No total, a “nota coberta” resume o legado de Eric John Ernest Hobsbawm em pífios 1.026 caracteres (pouco mais de um minuto e vinte segundos). Não há repercussão, na cobertura global, em nenhum lugar do planeta. No limite, o texto de Losekan contrasta profundamente com a chamada da apresentadora que assim chamou a matéria: “Morreu nesta segunda-feira (1º), em Londres, um dos maiores pensadores do século 20: o historiador Eric Hobsbawm. Ele foi vencido por uma pneumonia aos 95 anos”.

Outras palavras

Num rápido paralelo, a mesmo acontecimento foi assim anunciado e enunciado pelo Jornal da Band (ancorado por Ricardo Boechat):

“Um dos maiores intelectuais do século XX, o historiador Eric Hobsbawm morreu em Londres. Ele tinha 95 anos e estava internado com pneumonia”.

O texto da “nota coberta” está focado na obra A Era dos Extremos, talvez seu legado maior:

“Entre os mais de 30 livros está A Era dos Extremos, que conta a História, a partir da Segunda Guerra, até o fim da União Soviética (no começo dos anos 1990). A obra foi traduzida para mais de 40 línguas. Marxista, o escritor de origem judia enfrentou o nazismo de Adolf Hitler e foi membro do Partido Comunista da Inglaterra.”

A hierarquia das informações desnuda o viés antijornalístico do lead veiculado pelo Jornal Nacional. No âmbito da chamada produção social de sentidos, temos mais um exemplo de como o Jornalismo pode ser usado para desinformar o distinto público, pisoteando memórias e reputações.

Convém registrar, como escreveu Miquel Rodrigo Alsina (em A construção da notícia) essa relação indissociável entre acontecimento e notícia:

“Todo fato social é um acontecimento em potencial para a mídia e toda notícia é um acontecimento em potencial para a sociedade. A partir dessa perspectiva, podemos compreender muito melhor a interação entre mídia e sociedade. A mídia lança mão de acontecimentos sociais [no caso, a morte do historiador] como a matéria-prima, e, ao mesmo tempo, constrói e transmite um produto que pode chegar a se tornar um acontecimento social” (p. 134).

A notícia sobre a morte de um dos maiores intelectuais do planeta, nessa passagem de milênio, merecia mais qualidade jornalística, além da sobriedade e o respeito in memorian que qualquer ser humano merece.

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[Samuel Lima é docente da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), professor-visitante do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]