Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma vida em três mortes

A despeito da cobertura que diferentes veículos de informação destinaram à morte de Celso Furtado, creio haverem restado algumas lacunas cuja tentativa de preenchimento o presente artigo talvez possa promover, em respeito a uma das mais emblemáticas inteligências nacionais.

De um modo geral, as matérias publicadas foram bastante eficazes quanto ao propósito de delinear o perfil biográfico da emérita trajetória do autor, dentre dezenas de outras obras, de Formação Econômica do Brasil, razão pela qual se torna dispensável aqui reproduzir. Mais importante parece, no auge da atmosfera da perda que a morte biológica imprime, fazer-se necessário destacar outra face da morte que, menos perceptível ao olhar comum, escapa de maiores registros. Estamos, a rigor, tentando afirmar que Celso Furtado morreu três vezes.

As três mortes

A primeira das mortes – e provavelmente a mais penosa e implacável – deu-se com o exílio imposto pelo regime militar em 1964. O fato de haver integrado o governo de João Goulart, à frente do Ministério do Planejamento, serviu de justificativa para eliminar da vida brasileira uma das mais pródigas inteligências criadas nos trópicos. Triste nação aquela que se desfaz do melhor, seja em nome do que for. Pior ainda se ela se descarta do melhor em nome do que há de pior.

Com o decreto da anistia, eis que se abria uma nova oportunidade para a sociedade brasileira redefinir seus caminhos em direção a conquistas que haviam sido abortadas. Todavia, interesses menores somados a equívocos maiores desprezaram um dos mais ilustres nomes. Assim, o que significou tempos de abertura para uns continuou fechamento para outros. Entre esses, de novo, estava o nome de Celso Furtado. Uma segunda morte ali se deu. Tratado como membro de segundo escalão, nada de mais expressivo foi destinado a alguém que, por toda a vida, se preparou para vôos bem mais altos. Celso Furtado era um daqueles perfis que, pelas qualidades, acaba sofrendo os efeitos daqueles que nelas percebem o incômodo.

Fico imaginando que rumos teria tomado o país se o primeiro presidente civil da redemocratização houvesse sido Celso Furtado, ou que, ao menos, tivesse sido o segundo. Nada além de conjecturas elaboradas por certa invasão de melancolia que aqui se associa à terceira e definitiva morte. Talvez Celso Furtado tenha cometido o erro de pensar muito num país que prima por pensar pouco e pequeno.

Assim, para que não figurasse como alguém banido, o que espantaria o restante do mundo, concederam-lhe postos de decoração ou de imagem-exportação. Em 1985, foi designado embaixador do Brasil na Comunidade Econômica Européia, à época sediada em Bruxelas. Em 1986, foi recrutado para ocupar (com sabor de prêmio de consolação) a simbólica pasta ministerial da Cultura. Daí para a frente, embora sempre em intensa atividade funcional e intelectual, não mais a ele foi destinada projeção maior no âmbito da vida nacional. Contudo, poucos estavam, como ele, preparados para compreender o intrincado novelo da sociedade brasileira, o que Celso Furtado acabou consignando em centenas de páginas publicadas cujo teor a classe política não estava (e não está) à altura de assimile. Perde, com isso, o conjunto da nação.

É provável que, nessa terceira morte, tenha ido junto a última possibilidade de o país selar seu destino à figura de um estadista. Paciência, somos o quanto valemos e o que valemos é determinado pelas escolhas que fazemos. E, pelo que fazemos, repetimos a nós mesmos, década após década, quanto tão pouco valemos. Nessa lógica miúda na qual se move a pobreza da vida política e cultural brasileira, Celso Furtado, a exemplo de Roberto Mangabeira Unger, Luiz Costa Lima e Carlos Lessa, não podia ter lugar além do ocupado.

Corte preciso

A propósito desse Brasil mais próximo, Celso Furtado, além de inúmeras outras obras, deixa, com rara nitidez, o retrato de nossos descaminhos. É prudente revisitarem-se as reflexões fixadas em três obras consecutivas: A Fantasia Organizada (Paz e Terra, 1985), Transformação e Crise na Economia Mundial (Paz e Terra, 1987) e A Fantasia Desfeita (Paz e Terra, 1989). As visões alinhavadas nessa trilogia adquirem ainda maior consistência crítica e prospectiva ao somarem-se às configurações presentes em Brasil, a Construção Interrompida (Paz e Terra, 1992) e O Longo Amanhecer: Reflexões sobre a Formação do Brasil (Paz e Terra, 1999).

Para compreenderem-se mais claramente as razões das três mortes que couberam na história de Celso Furtado, bem as ilustra Gilson Schwartz no artigo ‘Celso Furtado, urgente e fora de moda’ que, como apêndice, acompanha a reedição de Formação Econômica do Brasil (Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro – Companhia Editora Nacional: Publifolha, 2000). Assim o autor inaugura o artigo:

‘Celso Furtado é um economista completamente fora de moda. Ninguém no mercado financeiro está interessado no que ele tem eventualmente a dizer. Ele não abriu seu próprio banco, não virou cafetão de informações privilegiadas nem abriu firma de consultoria para repetir o óbvio sobre a conjuntura econômica. Não arranjou emprego público para nenhum parente. Ou seja, para os padrões atuais de cidadania e mesmo de atuação de ‘grandes’ economistas no Brasil, ele é um perdedor’.

Gilson Schwartz, além de economista e sociólogo, demonstrou a destreza de um cirurgião ao delinear o corte preciso em direção ao mal nacional. Obrigado, Celso Furtado, pelo tanto feito e deixado, ainda que para tão poucos.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro