No dia 21 de janeiro deste ano, haverá a lembrança dos 85 anos da morte de Vladimir Lenin, o primeiro líder da União Soviética e grande personagem da Revolução Russa de 1917. No entanto, as poucas comemorações que serão vistas provavelmente não lembrarão uma faceta freqüentemente esquecida desse marxista: o jornalista.
Essa afirmação, em um primeiro momento, pode ser de grande estranheza para a maioria dos leitores. A primeira está na incompatibilidade simbólica da imagem ocidental do jornalismo – ou seja, de fonte de democracia e de liberdade de expressão – com a imagem construída aqui de Lenin, ou seja, de um ditador em um regime totalitário que, justamente, bloquearia as liberdades individuais.
Só que a historiografia e a análise política da teoria leninista nos mostram que há, sim, um Lenin jornalista. Claro que não devemos esquecer – e normalmente esquecemos – que o conceito de jornalismo do começo do século 20 é muito distinto do que acreditamos que seja a imprensa hoje. Assim, para sua época, Lenin seria um jornalista na plenitude do conceito então vigente.
Correspondente do Pravda
Sabemos que, com o fracasso da Revolução de 1905, os bolcheviques – mesmo com a maioria de seus líderes no exílio – continuaram a rivalizar com os mencheviques. É apenas na Conferência de Praga, em 1912, que os bolcheviques formaram um novo partido, que seria conhecido, até 1918, como Partido Operário Social-Democrata da Rússia (bolchevique), identificado pela sigla POSDR(b).
Assim, havia a necessidade de se criar um jornal para o novo partido e que, graças à Lei Básica, seria o primeiro jornal legal do movimento. Assim, em 22 de abril de 1912 sai o primeiro número do jornal Pravda. No entanto, tal fato colocou Lenin em uma situação complicada dentro do Partido, pois estava na França e perderia gradativamente a influência sobre os bolcheviques russos.
Não podendo voltar a São Petersburgo sem ser preso, Lenin decidiu ficar o mais próximo possível das fronteiras do Império Russo, escolhendo a cidade de Cracóvia. Um fato curioso ocorre nessa mudança para Cracóvia. Lenin, quando foi à polícia austro-húngara para pedir visto de residência na cidade da Galícia polonesa, teve que passar todos os seus dados para os oficiais. Quando perguntado sobre a sua ocupação, ele respondeu: ‘Sou correspondente do jornal democrático russo Pravda, que se publica em Petersburgo, e de um jornal russo editado em Paris sob o nome de Sotsial-Demokrat, e é essa a fonte dos meus rendimentos.’
Jornal fundado com kopeks
No entanto, Cracóvia não era perto o bastante para Lenin tomar decisões sobre o Pravda, como queria. Como não podia ser o editor-chefe ou mesmo um grande colaborador do jornal, começou a estudá-lo para perceber se ele estava cumprindo as suas funções de ser um jornal do proletariado. De 1912 a 1914, além de estudar o próprio Pravda, Lenin também estudou outros jornais, como o Zhivoie Dielo, o Nievski Golos e o Luch, todos jornais mencheviques.
O primeiro desses estudos surgiu na metade do ano de 1912. Intitulado ‘Balanço de Meio Ano de Trabalho’, Lenin propôs estudar as coletas de dinheiro do primeiro semestre de 1912 que financiaram a construção do Pravda, além da manutenção de outros dois jornais bolcheviques existentes na época: Zviezda, jornal que ‘preparou terreno’ para o Pravda e que encerrou suas atividades com o lançamento daquele, e o Niévskaia Zviezda, jornal de curta duração (8 meses em 1912) que serviria como jornal de ‘2ª linha’ dos bolcheviques.
Esse estudo serviria para mostrar que, nas palavras de Lenin, ‘o jornal fundado com os kopeks [centavos de rublo] coletados por pequenos grupos fabris de trabalhadores é muitíssimo mais sólido, estável e sério (tanto financeiramente como – o que é o mais importante de tudo – do ponto de vista do desenvolvimento da democracia operária) que o jornal que se apóia nas dezenas e centenas de rublos dados por intelectuais simpatizantes’.
O público e o anunciante
Tal conclusão faz Lenin afirmar, em suas próprias palavras, que ‘basta já de dominação, senhores do kopek burguês! Basta de tantos jornalecos sem princípios, sem outro foco que não o mercantilismo! (…) Que se amplie e fortaleça o costume de um kopek proletário para o jornal proletário!’ Aqui, as duas funções – ou seja, do produtor (da) e do destinatário (para) – tomam uma característica diferente do que pensamos.
O do não significa produção, mas sim posse, representatividade. Um jornal do kopek proletário significa um jornal que representa esse interesse e, conseqüentemente, esse interesse vira o dono do jornal. E o para continua a ser o destinatário, algo muito próximo do leitorado para utilizar o termo de Perseu Abramo em Significado político da manipulação na grande imprensa.
Dessa forma, Lenin, enquanto jornalista e, de certa forma, teórico do jornalismo, pode nos ajudar a refletir sobre questões muito atuais do jornalismo. Em uma época onde a publicidade rende mais ao jornal do que a venda dos seus exemplares, vale a pena colocarmos a pergunta proveniente de um jornalismo distante: quem manda na imprensa: o público ou quem paga a conta?
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Jornalista e pesquisador do Alterjor – Grupo de Estudos sobre Jornalismo Popular e Alternativo da ECA-USP