Aquele ano de 1975, que até se iniciava sob bons auspícios, em poucos dias apresentou sua verdadeira face.
O general Geisel sucedera ao general Médici, no ano anterior, como ditador de plantão e acenava para alguns afrouxamentos. A própria palavra ‘distensão’ ainda viria mais tarde. Mas logo nos primeiros dias de janeiro, os órgãos repressivos localizaram a gráfica do clandestino Partido Comunista Brasileiro. Pouco dias depois, Marco Antonio Tavares Coelho seria preso.
Marco Antônio era o mais ativo membro do PCB no Brasil. Comandava a Comissão Executiva do partido e, embora com dura vida clandestina, movimentava-se com desenvoltura em alguns ambientes políticos. Encontrava-se regularmente – e chegou a consolidar uma amizade – com Cláudio Abramo, homem de esquerda, mas muito mais próximo dos trotsquistas, um dos mais importantes e bem informados jornalistas da época. Abramo estava na Folha de S.Paulo já há alguns anos. Naquele 1975, iniciaria a reforma do jornal que viria a colocá-lo como um dos mais importantes órgão de imprensa do país.
É Otávio Frias Filho quem conta que, por falta de documentos, não pôde embarcar com o pai para o Rio de Janeiro, onde este teria um encontro histórico com o homem que viria a ser o todo-poderoso do governo Geisel, o general da reserva Golbery do Couto e Silva.
Um dos articuladores da descompressão política, Golbery foi claro ao estimular o velho Frias a modernizar o seu jornal. Ao regime não interessava que São Paulo tivesse apenas um único jornal de referência, referência clara ao Estadão. Frias entendeu o recado, repassou-o a Abramo, que chamou Alberto Dines para comandar a sucursal do Rio.
O jornalismo que a Folha praticou de 1975 a 1977 foi de uma qualidade impressionante. Acreditem, o matutino passou a contar com cerca de 20 correspondentes estrangeiros. Dois só nos Estados Unidos, mais o Paulo Francis. Osvaldo Peralva no Japão, Pedro Del Pichia e João Batista Natali na Itália. Clóvis Rossi na Espanha, em Portugal e na América Latina.
O começo do fim
Marco Antônio foi o único membro capturado da direção do Partido Comunista que não morreu. Salvou-o a sorte e o passado de deputado federal que tivera nos anos anteriores a 1964. Como não compareceu a um jantar com a esposa e outros familiares, evidenciou-se de imediato a prisão. Marco Antônio sobreviveu porque sua prisão foi denunciada no Congresso e em pequenas notas de jornais. Com isso, surgia para o país o tema dos desaparecidos políticos. Para provar que estava vivo, foi filmado, em petição de miséria, num pátio de presídio e a imagem foi exibida no Jornal Nacional.
Isso foi em janeiro de 1975. Em novembro de 1974, nas eleições daquele ano, o partido oposicionista MDB surpreendentemente venceu as eleições e colocou a estratégia do regime em cheque. Em meados de 1975, a repressão desmontava uma célula comunista que atuava, sem interrupções, desde os anos 1950, no interior da Polícia Militar paulista. Muitos são presos, alguns desaparecem.
A partir de setembro, em confronto aberto com a política de Geisel e Golbery, as prisões começam a lotar. No dia 29 de setembro, o jovem José Montenegro de Lima é preso. Há relatos de alguns que o viram numa casa de horrores. Nunca mais foi visto, mas ninguém pode denunciar sua prisão e morte à época.
A ofensiva vai fechando o cerco em outubro, mês em que os jornalistas vão desaparecendo das redações. Alguns jornais conseguem registrar pequenas notas informando as prisões.
Os cárceres de São Paulo contavam com pelo menos quinhentos presos. Os jornalistas já eram dezenas. No dia 24 de outubro, um comando procura Vladimir Herzog nas dependências da TV Cultura, onde ocupava o cargo de diretor de Jornalismo. Herzog compromete-se a apresentar-se ao DOI-Codi no dia seguinte pela manhã. O setorista militar da TV Cultura também pernoita na casa de Herzog. Seria um setorista ou já seria um agente?
Vlado foi o único jornalista a ter esse privilégio. A TV Cultura era vinculada à Secretaria de Cultura do estado, comandada por José Mindlin, indicado pelo governador Paulo Egydio Martins. Desde o início do mês uma campanha, na imprensa e na Assembléia Legislativa, vinha denunciando a ‘comunização’ da TV Cultura.
Na manhã do dia 25 de outubro, Vlado se levanta, beija sua esposa Clarice e dispensa até o café. Prefere tomá-lo num bar. Pontualmente às 8 horas apresenta-se com o setorista nas dependências do DOI-Codi. Identificam-se. ‘Você fica e você vai’, diz um oficial.
Nunca mais Vlado seria visto vivo. E a ditadura brasileira iniciava seu fim.
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Jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo