Quando eu era criança, nos anos 80, havia um comercial de vodca em que a qualidade do produto era ressaltada por alegadamente não causar ressaca: – “Eu sou você amanhã”, explicava um bem-disposto sósia de um sujeito sentado à mesa de um bar, antes de pedir ao garçom que substituísse o pedido que este acabara de fazer por uma dose da marca anunciada [assista aqui].
O slogan pegou e foi apropriado pelo jornalismo político em forma de um conceito (“efeito Orloff”) que se tornou corrente para fazer prognósticos e traçar analogias entre o Brasil e a Argentina: hiperinflação, escândalos de corrupção, a gangorra do dólar, planos econômicos mirabolantes – ao menos até a importação do receituário neoliberal, com Collor aqui e Menem lá, no início dos anos 90, ora um, ora outro, o que primeiro acontecia em um país acabava, de alguma maneira e guardadas as devidas proporções, por se reproduzir no outro.
Reversão de expectativas
A lembrança dessa anedota avivou-se por conta da repercussão, na imprensa argentina, do resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, entre o até então favorito Daniel Scioli, da “Frente para a vitória”, apoiada pelo governo de Cristina Kirchner, e Mauricio Macri, herdeiro do menemismo e até há pouco prefeito de Buenos Aires, da aliança conservadora “Mudemos”.
Até as proximidades das eleições, a expectativa era de que Scioli seria eleito já no primeiro turno ou, na pior das hipóteses, iria com folga para o segundo. Após um atraso de horas na divulgação do resultado (não justificável apenas pela votação ainda ser feita na base de papel e caneta), que intrigou parte da mídia mundial e gerou boatos na internet, anunciou-se a vitória apertada do candidato governista: 36,86% versus 34,33% de Macri. Sendo que as pesquisas agora colocam o candidato da “Mudemos” como favorito.
Além da reviravolta na eleição presidencial, o peronismo perdeu dois de seus mais tradicionais feudos: as províncias (o equivalente a estados) de Jujuy e, pela primeira vez em 32 anos, de Buenos Aires, a mais industrializada e povoada do país, até recentemente governada por Scioli.
O jornalismo político falhou em antecipar o tamanho do prejuízo para o kirchneirismo.
Em busca de explicações
Passada a surpresa e, como de praxe, sem redimir-se de sua pontaria, os analistas começaram a produzir explicações para o fenômeno. No cada vez mais governista Página 12, em um artigo significativamente intitulado “A vingança dos portenhos”, o colunista Luis Bruschtein formulou uma tese que se tornaria corrente entre os partidários de Scioli:
“Uma força política de portenhos de classe alta se impôs ao peronismo de trabalhadores e classe média baixa na província de Buenos Aires e conseguiu uma marca invejável em nível nacional. (…)
Houve nesta eleição um voto conservador que proveio de setores populares que ganharam em qualidade de vida durante esses anos, [voto] que também saiu de minorias sexuais ou de gênero que foram beneficiados por este governo, um voto que seduziu a grande quantidade de comerciantes e empresários que prosperaram de forma considerável nestes doze anos. Camadas médias que foram resgatadas da extinção por esse governo se voltaram para esse discurso que esconde as velhas politicas que as levaram à beira do precipício. Há um gesto de autoflagelação nesses setores seduzidos por um flautista de Hamelin que disse na campanha que estava de acordo com todas as medidas que votou contra.”
Como Bruschtein não explica por que razões a classe trabalhadora e as camadas médias se deixariam conduzir pela elite portenha, fica, além da concepção destas como politicamente acéfalas, incapazes de pensar e decidir por si próprias – e, portanto, à mercê do cabresto dos poderosos -, a impressão de que a explicação não passa de wishful thinking do jornalista. Agrava tal sensação a atenção nula que ele presta à hipótese, mais provável e passível de ser comprovada em dados oficiais, de que o agravamento da crise econômica durante o segundo governo de Cristina Kirchner teria afetado sobremaneira tais estratos sociais, corroendo, ao menos em parte, as melhorias que o próprio kirchnerismo anteriormente lhes proporcionara.
Fantasmas do passado
Na batalha entre as duas campanhas, ora intensa, chama a atenção, na estratégia do candidato do governo, o misto de artificialismo da polarização e ausência de relativização temporal: por um lado, fazendo uso de um “esquecimento do presente”, procura-se abstrair tanto a crise do país sob o kirchenirsmo, eternizado como benéfico e provedor, quanto o perfil intelectualmente deficitário e consideravelmente conservador de Scioli (candidato que, como reconhece o mais midiático dos historiadores argentinos, o kirchnerista Felipe Pigna, “está mais para a centro-direita dentro do peronismo”).
Por outro, a estratégia que vem sendo aplicada para criticar o candidato conservador não deixa de mostrar-se problemática: “Macri é a cara remoçada do menemismo”, define a crítica literária Adriana Persico, aludindo à combinação de insensibilidade social neoliberal e corrupção desmedida que caracterizou o período em que Carlos Saúl Menem habitou a Casa Rosada (1989-1999). “Cada cidadão tem a obrigação e a enorme responsabilidade de colocar sua memória a funcionar e decidir se quer voltar a esses terríveis velhos tempos”, prossegue ela.
Não obstante a justeza do alerta, a evocação dos fantasmas do passado, numa campanha conflagrada ao extremo, tem com frequência caracterizado Macri como uma retomada ipsis litteris do menemismo, Menem redivivo. Nesse sentido, Pigna é taxativo: para ele, o candidato representa “uma volta aos anos 90”, ideia que vem sendo martelada à exaustão pela campanha governista, sem qualquer ponderação ou relativização. Soa, assim, como se tal força política se tivesse mantido intacta por 16 anos, sem modificações ou nuances; a Argentina e o mundo dos anos 90 fossem idênticos aos de hoje, e a eleição do candidato da “Mudemos” significasse tão somente um resgate das políticas que Menem adotou durante seus dois mandatos, legando aos argentinos anos de caos econômico e debacle social.
Profetas do caos
Configura-se, desse modo, um cenário radicalizado, que o jornalista Juan Pablo Csipka, após elencar graves problemas tanto da administração Macri quanto do governo Scioli, declarar voto em branco e criticar a “demonização total e absoluta” contra Macri, assim resume:
“Por um lado, a extrema idealização, se não de Scioli, ao menos do kirchnerismo. Por outro, uma vertente, vamos chamá-la de nacional e popular, de certo gosto amargo característico dos anos de fúria do menemismo (por exemplo, a campanha de 1995): “Somos nós ou o caos”. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: nem Scioli nem o kirchnerismo são, a esta altura, alternativas antagônicas ao que pode fazer Macri [no poder].
Ao final trata-se, em um e outro caso, de “Disseminar medo massivo porque oh, existe a possibilidade de alternância de poder”, ironiza, no Facebook, a escritora argentina Pola Olixarac, autora do celebrado “As teorias selvagens” (Benvirá, 2011).
Tática do espantalho
Nós, brasileiros, já vimos esse filme. A referida tentativa de tornar indistinguíveis Macri e Menem, por exemplo, guarda evidente similaridade com os esforços do marketing governista para tornar indistintos Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso, como se, 20 anos depois, o primeiro fosse reeditar o mesmíssimo governo do segundo – e com a mesma tragédia social resultante. A candidatura Dilma, por sua vez, à semelhança do que hoje a campanha de Scioli faz em relação ao kirchnerismo, dissimulou a crise que os economistas já então diagnosticavam encarnando uma versão idealizada do petismo no poder – reforçada por comerciais que vendiam um país paradisíaco, de comercial de margarina -, valendo-se assim, como no caso argentino, de um discurso do tipo “nós ou o caos”. Tática que serviu tanto para reverter a ascensão de Marina Silva e – ao bradar que ela tiraria comida da mesa do trabalhador para aumentar os lucros do Itaú – tirá-la do primeiro turno, quanto para fixar a ideia de que o candidato tucano promoveria um ajuste fiscal de inspiração neoliberal.
Dilma vitoriosa, o resultado, é forçoso notar, é que o tal ajuste ortodoxo, agora a cargo de Levy, tem imposto cortes profundos no Orçamento do país, com graves consequências para Educação e Saúde; e que o Itaú (assim como o Bradesco do conselheiro Trabuco) tem anunciado recordes sucessivos de lucro enquanto o desemprego atinge mais de um milhão de trabalhadores desde o início do ano. Pesquisas indicam que essa distância entre o prometido e o cumprido – que alguns chamam de estelionato eleitoral – está no cerne da perda de confiança popular no governo Dilma, expressada nos 70% que, segundo o Ibope, hoje consideram seu governo ruim ou péssimo. Se o efeito Orloff ainda vigora, fica o alerta aos candidatos argentinos.
Tudo somado, tanto o desencanto popular com o governo Dilma quanto a reviravolta nas eleições argentinas parecem apontar para “a falência de um modelo de campanha eleitoral, extensamente usado pelo governismo brasileiro também: a política do “boogeyman” , do “cuco”, como dizemos em espanhol ou, em bom português, a política do espantalho”, aponta Idelber Avelar, professor do Stone Center for Latin American Studies da Tulane University (EUA). “É a política limitada à demonização do adversário”, critica, arriscando um prognóstico: “Deu certo por pouco, muito pouco no Brasil 2014, graças à campanha mais suja da História. Não deu certo no primeiro turno argentino de 2015 e, pelo jeito, não dará certo no segundo. Não dará certo no Brasil-2018”.
Vazio programático
Seja como for – e ressalvadas as notórias diferenças entre os governos Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, muito menos contemporizador -, não apenas salta aos olhos a similaridade entre as práticas político-eleitorais nos dois países, mas entre a atitude, a estratégia e a argumentação dos setores midiáticos governistas brasileiros e argentinos em relação às respectivas eleições. A leitura, por exemplo, da cobertura que o outrora modelar Página 12 faz do pleito – escamoteando os graves defeitos do atual governo enquanto supervaloriza o tendenciosismo e a força da mídia e demoniza a classe média – parece demais, a um tempo, um déja vu e uma antecipação, respectivamente, dos diagnósticos e desculpas que os blogs e publicações petistas vêm fabulando sobre a presente crise do governo Dilma, e do tipo de argumentação a que certamente viriam a recorrer numa eventual derrota da candidatura Lula em 2018.
Trinta anos depois daquele icônico comercial de vodca, Argentina e Brasil bisam a dinâmica do “Eu sou você amanhã” através da substituição da autocrítica, do debate franco e da apresentação de programas e propostas de ação, em prol do marketing político mais cosmético e da mera desqualificação do opositor, transformado em inimigo – e os eleitores deste em acéfalos e ingratos. Evidência de que, se os dois países evoluíram ao superar o jugo ditatorial, ainda estão muito aquém do nível de práticas, propostas e comprometimento que a verdadeira evolução democrática demanda.
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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog.