Um mês atrás, a NBC News exibiu, no programa Today, uma gravação que mostrava o vigia George Zimmerman, acusado de matar o adolescente Trayvon Martin na Flórida, ligando para o número de emergência ao desconfiar da atitude do garoto. No áudio – editado – mostrado pelo programa, Zimmerman aparecia dizendo “Este cara não parece bem. Parece negro”, o que causou a impressão de racismo. Descobriu-se, no entanto, que a gravação sem edição não trazia esta ideia. Nela, o vigia falava “Este cara não parece bem. Ou usou drogas ou algo. Está chovendo e ele está andando por aí, olhando.” O policial que o atendia ao telefone pergunta: “Ok. Ele é negro, branco ou hispânico?”. Ao que Zimmerman responde: “Parece negro”.
Assim que o erro veio à tona, o alto escalão da NBC News agiu rapidamente: demitiu o produtor responsável e divulgou uma declaração pedindo desculpas por fazer parecer que Zimmerman havia feito um comentário racista na ligação ao 911. Mas, como emissora de TV, a NBC News não fez algo básico, aponta David Carr em artigo no New York Times [22/4/12]: corrigir o erro no próprio programa em que ele foi veiculado.
“Qual o problema com o telejornalismo e as correções? Quando o resto do mundo jornalístico erra, normalmente se corrige. Mas emissoras agem como se a admissão de um erro no ar pudesse fazer com que um meteoro caísse em algum de seus preciosos âncoras. A NBC usou todos os poderes disponíveis para retificar o erro, menos o espaço televisivo de alta visibilidade onde o erro de fato aconteceu”, diz Carr.
Tema sensível
A gravação foi exibida pela primeira vez em 22/3, mas ninguém percebeu o problema até ela ser mostrada novamente em 27/3. A falha conseguiu a proeza de fazer com que âncoras de todas as inclinações políticas, de Jon Stewart a Sean Hannity, reagissem da mesma forma – com incredulidade.
Carr afirma que conversou com funcionários da NBC, e todos disseram que a edição equivocada foi algo “estúpido”, e não feita por algum motivo “ideológico”. Ainda assim, tratou-se de um grande lapso no processo editorial da emissora, que ajudou a inflamar um tema já sensível. Antes mesmo da gravação, o assassinato de Trayvon Martin, que demorou a alcançar a cobertura dos grandes veículos de comunicação do país, dominava o debate nacional. Assim que chegou às manchetes a história de que um vigia de bairro havia desconfiado da atitude de um jovem, ligara para a emergência e, mesmo orientado a não perseguir o suspeito, o matou, logo pipocaram os argumentos de racismo.
O jornalista Jonathan Capehart, do Washington Post, chegou a lembrar as regras que aprendeu quando era adolescente: “Não corra em público; não corra com nada nas mãos; não responda atravessado à polícia”. Charles M. Blow, do New York Times, expressou a mesma preocupação: “Este é o medo que toma conta de mim sempre que meus filhos estão na rua: que um homem com uma arma e um dedo nervoso os considere ‘suspeitos’”.
Por isso, a edição distorcida da NBC inflamou ainda mais um debate quente, pois deixou claro – erroneamente – que Zimmerman havia feito uma declaração racista logo antes de matar um jovem negro. “O tempo televisivo é claramente precioso e seria impraticável corrigir todo e qualquer errinho. Mas este não foi um errinho. Foi uma grande e enganadora omissão na edição sobre um evento que ganhou relevância nacional”, diz Carr. “Em algum momento nas quatro horas de duração do Today – talvez entre o segmento sobre um pavão barulhento que incomodava os vizinhos e a prévia do programa da atriz Eva Longoria sobre ‘solteiros fortes’ – alguém poderia olhar direto na câmera e resolver a história”.
Problema generalizado
Mas o problema, ao que parece, é generalizado: canais de TV quase nunca corrigem seus próprios erros. “A televisão é um processo industrial”, diz o jornalista Lowell Bergman, da rede pública PBS. “Ela é construída em uma ficção, e eles não querem desconstruir o modo como são feitas as notícias”.
Outra questão é o modo como as correções seriam feitas na TV. No jornal, elas não costumam ser publicadas no lugar de maior destaque; mas estão lá, e os leitores podem procurar por elas. Na televisão, a admissão de um erro teria que sair da boca de um apresentador que a emissora tanto promoveu como uma fonte confiável de informações.
Aaron Brown, professor de jornalismo da Arizona State University e ex-âncora da CNN, diz que, a não ser que manter o erro fora do ar seja mais embaraçoso do que levá-lo ao ar, as emissoras vão simplesmente esperar que ele seja esquecido. “Mas levando em conta a magnitude deste erro e o fato de ter se tornado uma pauta jornalística por si só, fico chocado ao ver que eles não o corrigiram no Today”, ressalta.
Carr ligou para Steve Capus, presidente da NBC News, preparado para discutir o assunto. Ele queria saber por que, apesar de o executivo ter pessoalmente investigado o caso, divulgado declarações e punido funcionários, nenhuma ação foi tomada para que uma explicação fosse dada ao público na TV. “Isso parecia errado para mim. O primeiro compromisso de uma emissora é com os telespectadores que assistem a seus programas diariamente”, ressalta o jornalista. Sua pilha de argumentos, no entanto, foi desarmada por uma simples frase de Capus: “Você provavelmente está certo”, respondeu ele.
O executivo continuou: “A verdade é que não tentamos nos esconder [do erro]. Tivemos um trabalhão depois que aconteceu. Fizemos uma investigação exaustiva, eu dei entrevistas a diversas publicações para falar sobre o assunto, mas provavelmente deveríamos ter feito isso em nosso próprio espaço”. Capus reconhece que a emissora ficou tão preocupada em corrigir a questão internamente que acabou sendo negligente com o público.
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