Foram precisos 40 anos, desde que o escândalo Watergate emergiu em 1972, para se chegar a uma compreensão adequada do papel da mídia no episódio que tirou o presidente Richard Nixon do poder. Mesmo assim, não é apenas a passagem do tempo que permite uma avaliação equilibrada, mas também a divulgação de alguns documentos e a revelação de informações, incluindo registros secretos do presidente; dados do FBI sob o Ato da Liberdade da Informação; um relatório interno há muito mantido em segredo sobre abusos de poder da CIA; e a confirmação, em 2005, de que a fonte secreta conhecida como Garganta Profunda era Mark Felt, número 2 do FBI em 1972-1973.
A junção de todas estas informações resulta em uma compreensão que diverge da primeira história apresentada pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward no livro Todos os homens do presidente, de 1974 e, dois anos depois, no filme inspirado na publicação. A imprensa realmente desempenhou um papel instrumental e possivelmente insubstituível. Mas, ao contrário do que foi propagada no livro e no filme, a mídia não usou a verdade como única arma.
A chave para esta versão mítica, claro, foi sempre o Garganta Profunda ou, mais precisamente, a percepção pública de seu papel – seja ele visto como um denunciante com princípios que lutava contra os esforços do presidente para minar a investigação do bureau sobre a invasão aos escritórios do Partido Democrata em Washington ou um frustrado pela nomeação política para a presidência da agência, quando ele esperava ser o sucessor de J. Edgar Hoover.
Mas havia uma falha no centro da narrativa e os novos dados preenchem a lacuna e desconstroem o mito ao mesmo tempo. Felt nunca teve a intenção de tirar Nixon do poder. Na realidade, ele era o seu ingresso para sua ambição de vida, que era suceder Hoover no cargo de diretor do FBI. Ele deu informações secretas ao Post (e também à revista Time) por uma razão particular: provocar a falta de confiança no diretor em exercício na época, L. Patrick Gray, do Departamento de Justiça, para que depois da eleição, Nixon nomeasse alguém de dentro da agência, que conhecia muito bem como disciplinar o bureau – Felt pensava ser este nome. Assim, o número 2 da agência sabia muito bem como a mídia podia ser manipulada em busca de uma boa matéria de capa.
Mantendo vivo o episódio
Com as intenções de Felt afinal reveladas, é possível chegar ao propósito real do vazamento e, finalmente, a uma nova compreensão do papel da imprensa, comenta Max Rolland [American Journalism Review, 29/8/12]. A realização mais importante da mídia nos cinco meses depois que o escândalo veio à tona foi simplesmente manter vivo o episódio, por meio da revelação de fragmentos da investigação do FBI. Evitar que a história caísse em esquecimento pode parecer algo mundano, mas não foi – especialmente com a combinação da apatia e desinteresse que marcou a resposta do eleitorado ao crime. Na era pré-digital, o fato de o Post ou a Time acompanhar o caso por meses tinha o potencial de vastas repercussões.
A dissonância entre o que a mídia divulgou de junho a novembro e a escassez de resultados legais (apenas os arrombadores haviam sido indiciados e condenados) gerou um questionamento da credibilidade da administração de Nixon. A cobertura contínua forçou a tantas negações que a Casa Branca não conseguiu recuperar a confiança perdida. Simultaneamente, a cobertura influenciou John J. Sirica, juiz distrital federal que julgou, em janeiro de 1973, a invasão aos escritórios do Partido Democrata em Washington. Ele não escondeu, na época, sua descrença em que o alto-escalão estivesse envolvido. A cobertura sugerindo o contrário certamente desempenhou um papel fundamental para sua percepção correta, assim como para outras investigações, como a conduzida pelo Comitê do Senado.
A atuação da mídia também foi preventiva para os três promotores federais, Earl J. Silbert, Seymour Glanzer e Donald E. Campbell, que estavam investigando a invasão com a ajuda de um grande júri. Mantendo o episódio em destaque significava que ninguém no Departamento de Justiça poderia questionar o que eles estavam fazendo, mesmo quando eles intimaram funcionários do alto-escalão. Foi o trabalho do grande júri e desses promotores – e não da imprensa – que resultou no ditado do Watergate de que encobrir o crime era pior do que o próprio crime.
Depois de quatro décadas, já passou da hora de dar crédito justo, em vez de perpetuar um conto de fadas. E, ainda assim, o escândalo ainda é um dos melhores da história jornalística, mesmo a mídia tendo que dividir os créditos.
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