Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

País sofre com ataques à liberdade de expressão

A Índia sofre o que o escritor Salman Rushdie chama de “emergência cultural”. Escritores e artistas de todos os tipos estão sendo assediados, processados e presos pelo que escrevem ou criam. O governo ou assiste impassível aos ataques à liberdade de expressão, ou é ativamente cúmplice destes ataques.

Neste ano, o país democrático mais populoso do mundo ficou no 140º lugar de um total de 179 países no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres sem Fronteiras, uma queda de nove posições desde o ano passado. Hoje, países como Afeganistão e Qatar possuem uma imprensa mais livre que a indiana.

Nos últimos anos, o governo vigia atentamente a Internet, exigindo que companhias como o Google e o Facebook removam conteúdos taxados como “depreciativo” ou “inflamatório”. Em novembro, a polícia de Mumbai prendeu uma mulher de 21 anos por reclamar no Facebook sobre o fechamento da cidade após a morte do político nativista Bal K. Thackeray. Outro usuário foi preso por “curtir” o comentário. Os dois foram detidos, segundo as autoridades, por “ferir sentimentos religiosos”.

Festivais literários controversos

O escritor indiano Rushdie, que, após a publicação de seu livro Versos Satânicos, em 1988, transformou-se, para seu desgosto, em um símbolo da luta por liberdade de expressão, deveria viajar para Kolkata há algumas semanas para participar de um festival literário. No último minuto, porém, foi informado que a polícia iria impedir sua chegada. Políticos locais se juntaram para apoiar a atitude. “Rushdie nunca deveria ter sido convidado”, disse um oficial do partido que governa o estado. “Trinta por cento dos eleitores são muçulmanos”, completou. Versos Satânicos provocou polêmica no Mundo Islâmico, levando Rushdie a receber uma fatwa ordenando a sua morte por blasfêmia e ofensa à Maomé.

Os organizadores do festival literário chamam a cidade de Kolkata de “capital cultural da Índia”. A noção de que qualquer cidade cultural pudesse tentar silenciar escritores é, obviamente, irracional.

Do outro lado do país, com 120 mil visitantes em 2012, o Festival Literário de Jaipur é uma das maiores do mundo, prova viva da fome da Índia por vozes literárias. Neste ano, líderes do partido Bharatiya Janata, defensor do nacionalismo hindu, exigiram que escritores paquistaneses fossem proibidos de falar no festival. (Para seu crédito, os organizadores defenderam os escritores e diversos autores paquistaneses discursaram).

Logo após os organizadores atravessarem essa polêmica, um nova surgiu. Em um painel intitulado “República das ideias”, o sociólogo Ashis Nandy, talvez o mais proeminente intelectual do país, fez um comentário sobre a prevalência de corrupção dentre as castas baixas – algo tão provocativo quanto um professor americano dizer que imigrantes irlandeses e italianos se juntaram a forças corruptas para subir a escada socioeconômica. Em qualquer sociedade livre, seria justo debater esse ponto, mas, em Jaipur, Nandy foi acusado de crime contra o Ato de Prevenção de Atrocidades.

Restrições razoáveis

Hoje, na Índia, o livre discurso é uma atrocidade. Um filme, por exemplo, pode passar pelo Conselho Censor, mas então ser banido pelo governo. Foi o que aconteceu com Vishwaroopam, um suspense distribuído internacionalmente, mas proibido no próprio estado de origem sob a justificativa de que poderia revoltar muçulmanos.

Em Bangalore, a polícia exigiu que uma galeria de arte removesse pinturas que mostravam divindades hindus nuas, por ferir sentimentos dos hindus e provocar violência.

Dentro da constituição indiana moderna, a liberdade de expressão está sujeita ao que o governo chama de restrições “razoáveis”. O Estado pode silenciar seus cidadãos por um número de razões, incluindo a violação da “ordem pública”, da “decência ou moralidade” e das “relações amigáveis com Estados estrangeiros”.

Tribunais indianos, enquanto isso, fazem pouco para controlar o abuso de poder das autoridades governamentais. A corte suprema do país permitiu a prisão de Nandy e reforçou a posição do estado de que ele não tinha “licença” para fazer esse tipo de afirmação: “uma ideia pode machucar pessoas”, disse o chefe de justiça. “Uma ideia pode ser punida dentro da lei”.

A Índia não pode esperar ter uma capital cultural mundial, muito menos uma sociedade livre, enquanto não proteger o direito de expressão. Sem uma emenda constitucional que garanta essa liberdade, o país não poderá se afirmar justamente como a “maior democracia do mundo”.

Os indianos devem entender que a liberdade de discurso, o direito de pensar e trocar ideias livremente são o fundamento da democracia que eles gozam. Se isso for fraco, a democracia também o é.

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[Suketu Mehta é professor associado da Universidade de Nova York e autor do livro Bombaim: Cidade Máxima]