A história do lendário repórter Clarence Jones, que trabalhava no anonimato, faz mais do que encher-me de nostalgia pelos dias dos jornais improvisados e das reportagens transmitidas por rádio. Faz com que eu queira imaginar as novas formas de mídia de massa que poderiam permitir que aflorasse de novo aquele desatino com espírito público.
Agora, que os celulares podem fazer filmes e a internet dá acesso a uma audiência de massa a qualquer pessoa que tenha um computador, reportagens no anonimato podem ser feitas por qualquer um. Porém, pelo menos até agora, parece mais provável que isso seja feito por ativistas políticos – inclusive os que pretendem induzir ao erro. O livro de Clarence Jones, They’re Gonna Murder You: War Stories From My Life at the News Front, lembra-nos da necessidade de achar um jeito de criar e manter instituições que venham a usar essas ferramentas de uma maneira responsável e justa. Nascido em Jacksonville, no estado da Flórida, em 1934, ele pôs seu talento de escritor e ingenuidade mecânica a serviço do jornalismo.
Sua carreira, ainda jovem, com o jornal de sua cidade lembra-nos que os jornais eram um monopólio natural na maioria dos lugares e os ruins podiam prosperar tão facilmente quanto os bons. Os dois jornais que existiam em Jacksonville, e frequentemente impediam projetos controvertidos, pertenciam à empresa da estrada de ferro, vinculada à estrutura de poder da cidade. Jones procurou escapar, candidatando-se simultaneamente à Fundação Nieman e ao Miami Herald. Ambos responderam positivamente. Primeiro, ele foi para Harvard, entrando para a turma de 1964 da fundação.
“Beleza de técnica”, disse-lhe um policial
Jones e eu tivemos empregos sobrepostos com o Herald e, à época, sua sede, o grupo Knight Newspapers. Ele reproduz com fidelidade a cultura do jornal e, no capítulo “Patrões com peito”, faz uma homenagem a dois dos criadores dessa cultura, o publisher John S. Knight e o editor John McMullan. Eram jornalistas duros que contratavam bons repórteres e sempre lhes davam apoio. No Herald, Jones usava um amplo espectro de métodos: fontes confidenciais, pistas de jornal e trabalho anônimo para expor a corrupção pública e o crime organizado. Em 1968, tornou-se o primeiro repórter a analisar registros de arquivos públicos com um computador. Foi para sua investigação do sistema de justiça criminal de Miami.
Mas os relatos mais excitantes de Jones são os de seus dias de televisão. Frustrado com o baixo salário pago pelo Herald, ele aproveitou uma oportunidade de trabalhar na WHAS-TV, da família Bingham, em Louisville, no estado de Kentucky, e embarcou numa operação de anonimato a longo prazo. Durante oito meses, viveu sob um nome falso e participou, como freguês, de salões de jogos de azar. Tinha uma câmera escondida numa caixa em que levava o lanche e um microfone atado a seu peito. Foi aí que aprendeu a usar a informação estrategicamente.
Após ter transmitido sua reportagem sobre jogo ilegal e corrupção na aplicação da lei, apareceu numa entrevista ao vivo com o prefeito. O prefeito acusou-o de ser um agente do FBI e de ter falsificado uma entrevista com um amigo seu, utilizando sobras de recortes da entrevista de outra pessoa. Jones prometeu provar a autenticidade mostrando longos trechos daquela entrevista no noticiário das 11 daquela noite. Foi o que fez. “Beleza de técnica”, disse-lhe uma fonte da polícia mais tarde. “Guarde sempre um trunfo na manga para jogar caso eles consigam prender você num canto.” Jones aprendeu a fazê-lo deliberadamente em investigações posteriores. O estado da Flórida acabou aprovando uma lei que proíbe a gravação de conversas sem o conhecimento dos participantes. Jones achou uma maneira astuciosa de burlá-la.
Trabalhei anônimo muito cedo
Num esforço para preservar a segregação racial, o legislativo estadual havia tornado fácil a criação de escolas particulares e algumas viraram fábricas de diplomas. Jones atraiu um vendedor de uma dessas escolas à casa de um repórter, onde foi convidado a vender seu peixe. O repórter e o vendedor sentaram-se à mesa, na cozinha, com um microfone escondido numa torradeira. Sempre que o vendedor respondia a uma pergunta que o incriminava, o repórter usava um interruptor escondido para desligar o microfone. Mas uma câmera no pátio, também escondida, filmava a resposta visualmente quando esta consistia de um aceno de cabeça e os lábios formando claramente um “é isso aí”.
Em 1984, finalmente Jones decidiu que o jornalismo não pagava o suficiente e tornou-se consultor de um agregador de notícias em estratégias para se livrar de repórteres chatos, como ele. Seu primeiro livro é sobre esse esforço: Winning with the News Media: A Self-Defense Manual When You're the Story. Seus conselhos variam de dicas de comportamento na frente de uma câmera e nuances de acordos de confidencialidade a minimizar os efeitos de uma matéria destrutiva apurando todos os fatos com velocidade e precisão. Ele consegue seus objetivos contando histórias fascinantes.
Agir no anonimato para conseguir informação que de outra maneira não estaria disponível é uma velha e decente tradição, exemplificada por Nelly Bly que, em 1887, fez-se passar por uma louca para investigar um asilo para doentes mentais para o jornal The World, de Nova York. Eu trabalhei anônimo muito cedo, em minha carreira, ainda estudante, quando escrevia para o Kansas State Collegian. Botei uma gravata borboleta e sentei-me na última fila, numa reunião da faculdade, enquanto o diretor punha em risco a liberdade acadêmica ao instruir os professores de arquitetura a pararem de criticar os prédios mais novos do campus, que haviam sido projetados por um protegido político. Após o encontro, ao saber da minha presença, o diretor tentou impedir a publicação da matéria, mas o estado do Kansas tinha a tradição de liberdade de imprensa estudantil e meu texto foi publicado.
Repórteres duros e instituições fortes
O entusiasmo pelos métodos anônimos perdeu força depois que foi recusada a entrega do prêmio Pulitzer ao Sun-Times, de Chicago, por seu primoroso trabalho, anônimo, que expôs a sonegação fiscal e o suborno pelas autoridades da cidade. Em 1977, o jornal abrira um bar com o nome irônico de Mirage [miragem] e ali gravou um desfile de inspetores e autoridades procurando e recebendo pagamentos ilícitos. A diretoria do prêmio Pulitzer que vetou o bar Mirage incluía Ben Bradlee, cujos repórteres do Washington Post trabalhavam anonimamente em matérias menos elaboradas, como, por exemplo, trabalhadores imigrantes. Pareceu-me que a regra oculta era de que por um simples engano, tudo bem, mas por um engano bem elaborado, nada feito. O código de ética da Sociedade dos Jornalistas Profissionais, de 1996, deixou as coisas mais claras ao permitir explicitamente o anonimato “quando os tradicionais métodos abertos não produzirem informações vitais para o público”. E acrescentava: “O uso de tais métodos deve ser explicado como parte da matéria.”
Nas ciências sociais, a observação participante é considerada uma técnica honesta e eficaz. É eficaz porque a consciência do observador poderia mudar o comportamento das pessoas que estão sendo observadas. E é honesta quando a verdade proporciona um benefício social maior do que o constrangimento àqueles que se equivocaram. Trata-se, é claro, de uma ética utilitária, contrapondo o bom ao prejuízo de qualquer ação. Os jornalistas costumam sentir-se mais confortáveis com as regras da ética – na tradição do filósofo alemão Immanuel Kant, que dizia que a regra é mais importante que o seu resultado. Essa abordagem é conveniente para quem trabalha com prazos, pois permite decisões mais rápidas.
Para adotar o caminho utilitário, são necessários repórteres duros apoiados por instituições fortes dirigidas por pessoas como os “patrões com peito” de Jones. Enquanto espero que a mídia digital os produza, esta nota biográfica lembra-me o que é possível.
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Philip Meyer é professor emérito na Universidade da Carolina do Norte e pesquisador de temas sobre o jornalismo.