“Você está brincando comigo?”
Sempre fico pasma quando um repórter me pede – e foi o que fizeram meia dúzia de vezes, quando eu trabalhava no Pentágono – que lhe mostre um documento confidencial. Eles fazem o pedido alegremente, sem qualquer preocupação, aparentemente sem pensar nas implicações. Minhas resposta incrédula colhia uma resposta meio tímida: “Bem, eu tinha que perguntar.”
Inúmeras autoridades da segurança nacional têm algum tipo de versão para esta conversa – inclusive o assessor de segurança do Departamento de Estado que o correspondente James Rosen, da Fox News, teria sondado para obter informações sobre a Coreia do Norte. Rosen escreveu num e-mail que “adoraria ver alguma análise interna do Departamento de Estado”.
Já trabalhei dos dois lados do balcão – como repórter da Rádio Pública Nacional e como autoridade do Departamento de Defesa – e é com essa perspectiva dividida que venho observando o furor sobre a apreensão dos registros telefônicos e de e-mail de jornalistas durante as investigações do Departamento de Justiça sobre vazamentos de segurança nacional. Para alguns repórteres e gurus, é particularmente preocupante a aplicação de uma ordem de busca sugerindo que Rosen foi “auxiliar, cúmplice e co-conspirador” juntamente com sua fonte. Comentaristas censuraram o Departamento de Justiça por criminalizar o próprio jornalismo.
Críticas para um Estado saudável
Para a democracia, o valor de uma imprensa corajosa e sem restrições fuçando nos cantos escuros que as agências prefeririam manter escondidos é indiscutível. Mas fico pensando por que os jornalistas não compartem parte da responsabilidade por transgressões que, muitas vezes, estimulam suas fontes a cometer.
Qualquer empregado do governo que obtenha acesso a áreas de segurança recebe instruções sobre as regras de como usar informações confidenciais e, como parte dos termos de seu contrato de emprego, deve assinar um papel reconhecendo as potenciais consequências de violar a lei. Muitas autoridades – eu, inclusive – são submetidas a um exame de polígrafo – uma experiência extremamente desagradável. As carreiras de funcionários da segurança nacional podem ser arruinadas dependendo da forma pela qual tratam documentos etiquetados SECRETOS.
Já os repórteres têm pouco a perder quando rastreiam vazamentos. Nunca um jornalista norte-americano foi processado por publicar informações confidenciais. E a mídia poderia ganhar proteções ainda maiores com a nova lei e procedimentos que vêm sendo examinados pelo Departamento de Justiça.
Já ouvi, tanto de repórteres quanto de autoridades de primeiro escalão, que as investigações de vazamentos no governo Obama vêm tendo um efeito negativo sobre os funcionários que normalmente interagem com jornalistas. Isso é triste porque as conversas sistemáticas sobre os negócios do governo, assim como a admissão de perspectivas alternativas por meio das perguntas que os repórteres fazem – ou suas reflexões sobre aquilo que escutam – são críticas para um Estado saudável.
New Yorker
Mas o que está em jogo poderia ser mais claro se as fontes soubessem que os repórteres também estavam arriscando: se compreendessem que os jornalistas não estavam perguntando por perguntar – na esperança de um eventual furo ou mesmo felizes de participarem de uma campanha de mensagens –, mas porque a informação é tão crítica para o interesse público que eles estão dispostos a correr o risco de repercussões por encontrá-la e divulgá-la.
Embora comparativamente não enfrente restrições, muitas vezes falta coragem à imprensa nos Estados Unidos. As relações de Washington, cimentadas por vazamentos orquestrados e insinuações de bastidores, podem aproximar-se do servil. Também aí, a falta de sinceridade do governo tem sido exposta no atual imbróglio.
Muitas informações estão protegidas por uma confidencialidade não exigida. É difícil levar a sério um sistema que põe debaixo do mesmo guarda-chuva tantos gigabytes de material que não tem nada de crítico à segurança nacional e um tantinho de nada de coisas que têm. Numa reunião do Conselho de Segurança Nacional, vi, entre outros documentos, um artigo da New Yorker com o carimbo SECRET/NOFORN [Secreto/Não deve ser divulgado a cidadãos estrangeiros], o que significava que apenas cidadãos norte-americanos devidamente autorizados poderiam lê-lo. Um colega meu mandou-me um e-mail risonho pelo sistema não-confidencial com um grunhido SECRETO. Esse uso errado ridiculariza as regras que as investigações de vazamentos procuram aplicar.
Apenas 17 documentos divulgados
Pelo menos tão preocupante é o duplo padrão que pareceu aplicar-se às recentes investigações. As seis acusações feitas pelo governo Obama foram todas dirigidas a funcionários governamentais de baixo escalão. Entretanto, os funcionários de alto escalão fazem os vazamentos – ou os autorizam – com impunidade.
Em setembro de 2010, uma onda de matérias nos principais jornais norte-americanos divulgou uma suposta decisão do governo sobre como seria tratada a corrupção no Afeganistão. Examinando detidamente os artigos, e cada vez mais estupefata, olhei para uma nota em minha mesa: não só havia passagens no artigo que eram citações de informações confidenciais, como o documento tinha escrito RASCUNHO. Ainda não havia sido tomada decisão alguma sobre o rascunho porque o debate nem mesmo chegara ao nível das Secretarias. Era um caso clássico de vazamento ofensivo de Washington. Durante meses, pensei que o autor fosse o falecido Richard Holbrooke, que na época era representante especial no Afeganistão e no Paquistão. Mas continuei a perguntar aos repórteres e finalmente rastreei o vazamento até um funcionário do primeiro escalão da Casa Branca – cuja carreira continuou, sem problema algum.
No ano passado, o colunista David Ignatius, do Washington Post, teve acesso prévio, e exclusivo, a 17 documentos que haviam sido recuperados do recinto em que se encontrava Osama bin Laden, em Abbottabad, no Paquistão. Ignatius escreveu que os documentos haviam deixado de ser confidenciais, mas ainda não estavam disponíveis ao público. Depois de mais de seis semanas, aqueles 17 documentos – e apenas aqueles 17, de um total de cerca de 1,5 milhão recolhidos em Abbottabad – foram divulgados. Como é que uma seletividade dessas está de acordo com uma política de não-confidencialidade coerente?
Lei deveria ser aplicada de maneira igual
O exemplo mais notável de divulgação de uma informação confidencial à vista de todo mundo talvez sejam os detalhes oferecidos pela mídia na esteira do ataque que matou Bin Laden – coroados pelas instruções de John Brennan, que na época era o principal conselheiro de contraterrorismo da Casa Branca. A especificidade supérflua deixou atônitos vários funcionários que haviam ajudado no planejamento do ataque, inclusive Robert Gates, então secretário do Departamento de Defesa.
A lei, inclusive as normas que protegem segredos de segurança nacional, deveria ser levada a sério e decisões de violá-la por motivos de consciência não deveriam ser tomadas de maneira irrefletida. Porém, pelo mesmo motivo, a lei não deveria ser prolongada em nome de objetivos muito além daqueles pretendidos original e legitimamente. E, o mais importante, deveria ser aplicada de maneira igual a todos os que juraram defendê-la.
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Sarah Chayes é membro da fundação Carnegie Endowment for International Peace. Foi repórter da Rádio Pública Nacional e assessora especial do chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos.