No fim da semana passada, enquanto soldados e policiais abriam fogo contra partidários do presidente deposto Mohammed Mursi no Cairo, em um ataque que levou à morte de pelo menos quatro pessoas, um canal de TV estatal exibia uma entrevista com um policial assegurando o público que seu departamento estava trabalhando incessantemente para garantir a segurança dos cidadãos. Em outra emissora estatal, um programa religioso aconselhava os telespectadores a respeitar os idosos.
Desde que tirou Mursi do poder, a liderança militar – que havia prometido não excluir nenhum lado político de participar do futuro do Egito – vem se esforçando para controlar a narrativa. Para tanto, pressiona os veículos de mídia. Alguns canais de TV foram fechados, tiveram equipamentos confiscados e jornalistas detidos. Foi o caso da al-Jazira local e de uma emissora dirigida pela Irmandade Muçulmana, grupo do qual Mursi faz parte.
Tom patriótico
Nos canais estatais, o tom do discurso mudou, aparentemente para refletir os interesses do novo poder. A mudança já pôde ser sentida na quarta-feira [3/7], dia em que Mursi foi deposto. Há dias, milhões de pessoas iam às ruas para pedir a saída do presidente, acusado de não resolver os problemas econômicos do país e de tentar “islamizar” a sociedade.
Enquanto o ministro da Defesa se preparava para ir à TV anunciar o fim do governo de Mursi, a televisão estatal já preparava o público para o que viria: não havia, no noticiário, menção ao nome do presidente ou à Irmandade Muçulmana, que passou a ser chamada de “aquele grupo”. Um âncora entrevistou um general aposentado, que falou sobre o importante papel dos militares no país. Foram cantados hinos patrióticos, e exibidas imagens de caças cruzando o céu.
Mal havia terminado o discurso do ministro na TV quando homens, armados e à paisana, invadiram um escritório da afiliada da al-Jazira, pediram a identificação dos jornalistas presentes e confiscaram celulares, computadores e iPads – ou seja, qualquer aparelho que pudesse ser usado para comunicação. Os funcionários foram levados em carros de polícia. Outras emissoras foram fechadas ao mesmo tempo, em uma ação coordenada.
Quando a TV egípcia parou de transmitir os protestos dos muçulmanos pró-Mursi, eles acabaram recorrendo à internet, com transmissões online ao vivo. A maior parte dos jornalistas detidos já foi solta. Mas a demonstração de repressão no momento de transição de governo pareceu contrariar o discurso do militares de que não tinham a intenção de se envolver na questão política.
Câmera confiscada
A mídia estrangeira também foi acusada, pelos militares, de disseminar desinformação. Pelo menos em um caso, houve interferência na cobertura: durante uma entrada ao vivo, um correspondente da CNN foi interrompido por soldados quando tentava reportar sobre confrontos no centro do Cairo. A câmera da emissora de notícias americana foi brevemente confiscada.
Depois que a BBC e outras organizações internacionais noticiaram que manifestantes pró-Mursi haviam sido mortos por soldados do lado de fora de um clube militar, um membro do Exército, não identificado, afirmou ao jornal estatal Al Ahram que “veículos de mídia estrangeiros” estavam incitando conflitos entre a população e os militares.
Uma repórter de um jornal privado egípcio, que deu entrevista ao New York Times mas pediu para não ser identificada, afirmou que seu editor deu ordem explícita para que a equipe não reportasse sobre manifestações pró-Mursi e indicasse, nos textos, que os responsáveis por atos de violência eram sempre os muçulmanos. Segundo o Times, uma análise do site do jornal em questão, no fim de semana, parecia confirmar a história.
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