Foi o bastante. Depois, a publicidade com a morte e o funeral de Nelson Mandela tornou-se absurda. Mandela foi um líder político africano com qualidades que atendiam a uma conjuntura fundamental para as questões de sua nação. Isso foi tudo e isso foi o bastante. No entanto, sua reputação caiu entre ladrões e cínicos. Sequestrado por políticos e celebridades, de Barack Obama a Naomi Campbell e Joseph Blatter, ele tem que ser endeusado para purificar outros com sua glória. Nesse processo, tornou-se desumanizado. Ouvimos tanto falar da banalidade do mal; às vezes, deveríamos notar a banalidade do bem.
Parte disso se deve à mecânica cruel da mídia. Foram gastos milhões de dólares com os preparativos para a morte de Mandela. Equipes foram deslocadas, hotéis foram ocupados e cabanas foram alugadas nas aldeias do território de Transkei. Poderiam ter sido construídos hospitais com o dinheiro que foi gasto. E a mídia enlouqueceu. Na semana passada [retrasada], peguei um apresentador da BBC morrendo de tédio enquanto pedia a um convidado que comparasse Mandela com Jesus. A emissora recebeu mais de mil queixas reclamando da cobertura excessiva. Será que está preparando uma ressurreição?
Mais séria é a obrigação que o culto do evento-mídia deve à história. Não há dúvida alguma de que na década de 1980 Mandela era um “ícone necessário” – não apenas para os sul-africanos, mas para o mundo em geral. Naquilo que foi equivocadamente apresentado como último grande ato do recuo imperial, os brancos foram caricaturados como ruins e os negros como bons. A chegada de um líder negro de modos gentis – ainda que um ex-terrorista – moldado para a beatificação foi uma dádiva divina.
A revolução tribal
Enquanto visitava e escrevia sobre a África do Sul nos últimos anos de domínio branco, na década de 80, percebi claramente que a grande luta não se travava entre os brancos sul-africanos e o ANC (Congresso Nacional Africano), de Mandela, cujos líderes estavam presos ou no exílio, mas dentro da República Sul-Africana. Não se tratava de uma rebelião contra uma potência estrangeira. Era um conflito potencial entre uma maioria impotente e uma minoria potente no qual a semelhança do último dando lugar ao primeiro parecia mínima – e, no curto prazo, desnecessária.
O primeiro herói dessa luta foi o primeiro-ministro dessa época, FW de Klerk. A compreensão de que este grupo deveria ceder o poder a um governo negro era tanto uma conversão moral quanto realpolitik. Os africâneres não capitularam devido a uma força poderosa (como sanções, por exemplo) que os esmagara ou à significativa queda da Rodésia e do império português. Seus sacerdotes e intelectuais disseram-lhes que o apartheid perdera a razão de ser. Haviam perdido seu legado. Fora, disse De Klerk, “um erro terrível”.
Ainda assim, a tarefa de mudar para um domínio de maioria negra era hercúlea e longe de ser inevitável. Um homem que não fosse do porte de De Klerk poderia ter batalhado por outra década de matanças crescentes. Mas sua revolução tribal, bem narrada pelo historiador e estudioso dos africâneres Hermann Giliomee, foi bem-sucedida. Foi o raro caso de uma minoria entrincheirada passando pacificamente o poder a uma maioria.
Momento breve
Mandela era fundamental para a tarefa de De Klerk. Era um aristocrata africano, articulado com as aspirações de seu povo, um conciliador e perdoador de males passados. Mandela parecia incorporar a encruzilhada da divisória racial, possibilitando, dessa forma, a tarefa quase impossível de De Klerk. Os brancos sul-africanos juravam que ele era o único líder negro com quem se sentiam seguros – com olhares nervosos na direção de Desmond Tutu e outros.
No início da década de 1990, não se tratava de um recuo pós-colonial na África do Sul. Era uma negociação entre um conjunto de tribos e outro. Com todas as crueldades da luta armada, foi surpreendentemente econômico em confrontos sangrentos. Não foi um Paquistão, um Sri Lanka ou um Congo. A ascensão do domínio majoritário na África do Sul foi um dos momentos mais nobres da história africana. O consequente Prêmio Nobel foi corretamente compartilhado entre Mandela e De Klerk, coisa que foi ignorada por quase todos os obituários da semana passada. Em 1990, havia dois homens bons na Cidade do Cabo.
O conceito de bondade num líder político sempre fascinou os estudiosos, de Platão a Nietzsche e ainda mais além. Precisamos acreditar nele para não cair no cinismo; e precisamos ter cuidado com ele para não resvalar para a idolatria. Maquiavel teria argumentado que era fácil para Mandela ser bom. Ele estivera na prisão e sua coragem era essencialmente pessoal. Seu momento de verdadeira bondade foi breve. Do estudo que fizera da legislação britânica, ele compreendia o conceito de legitimidade no governo e o papel das concessões. A isso, acrescentou um instinto pela reconciliação, mas em parte porque sabia que sem ele era pouco provável vencer.
Senso de ironia
Uma vez que esse instinto abriu a porta para um acordo, Mandela agiu rapidamente para dar garantias aos empresários brancos, que poderiam ter deixado o país. Ele soldou o ANC, transformando-a numa força eleitoral, e trabalhou para segurar Zulus dissidentes quando houve uma breve ameaça de secessão em Natal. Porém, como relata o admirável obituário escrito por David Beresford no Guardian, ele foi pior que um presidente comum. Pouco fez para resistir ao clientelismo e à corrupção, foi um executivo medíocre e nunca fez uso de seus talentos para domar Mugabe ou aliviar os horrores que afligiam o resto da África. Preferia encontrar-se com celebridades e levantar fundos duvidosos.
A história humana pode exigir mitos, mas deve reconhecê-los como tal. Certa vez discuti com a escritora Jan Morris sobre o disparate que alguns galeses atribuem a Owen Glendower. Ela protestou alegando que a “verdade” na história era aquilo que as pessoas acreditam que seja. Todas as tribos precisam de lendas, que cimentam melhor suas identidades. As lendas não são feitas para serem verdade.
No entanto, a história é uma disciplina, e não uma crença. O mundo pode exigir um “ícone do tipo Mandela”, mas com que objetivo? Para veículos sérios, discuti-lo em comparações com Madre Teresa, Gandhi ou Jesus de Nazaré é pura loucura. Ele era Nelson Mandela. Depois de verem seu ex-presidente embebido na virtude e ressecado de glória por uma assembleia de celebridades mundiais, os sul-africanos deveriam repatriar sua reputação. Mandela representou-os por alguns anos, na década de 90, e se quiserem reverenciá-lo como símbolo de unidade, de bondade e de paz, que o façam. Ninguém tem nada com isso.
Mas a qualidade sul-africana que me lembro que Mandela tinha em profundidade não era a santidade, e sim um sólido senso de ironia. Duvido que esteja usando o halo de ressurreição de lata da BBC. Mas se pudesse, acho que se estaria torcendo de rir.
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Simon Jenkins é jornalista e escritor