Imagens recentes divulgadas a partir de um acúmulo de 55 mil fotografias mostrando cadáveres esquálidos, estrangulados e surrados – supostamente tiradas nas prisões do presidente sírio Bashar al-Assad – são terríveis de ver. E também são desconcertantes. As fotografias, que documentam a morte de cerca de 11 mil presos, não foram tiradas pela oposição, e sim por solicitação do regime de Assad. Não preferiria, um governo desse tipo (ou qualquer governo), esconder seus crimes, ao invés de registrá-los?
Embora este tesouro fotográfico não tivesse por objetivo a divulgação – teria sido contrabandeado para fora do país por um dissidente –, estas não são as primeiras imagens da selvageria produzida pelo regime sírio. As forças de Assad disseminaram inúmeras outras fotografias e vídeos documentando execuções e tortura por elas próprias orquestradas. Paralelamente, militantes da jihad anti-Assad transmitem orgulhosamente suas próprias imagens de violência e selvageria (as decapitações parecem ter a preferência e às vezes são acompanhadas por gritos de aplauso das multidões).
Se a guerra civil espanhola foi o primeiro conflito a ser fotografado, por Robert Capa e outros, de um ponto de vista moderno – ou seja, de perto, no campo de batalha, e entre os civis – a guerra civil síria pode ser o primeiro conflito realmente pós-moderno, pelo menos quando se trata de imagens. Ambos os lados estão engajados numa competição perversa para mostrar ao mundo, assim como um ao outro, como podem ser implacáveis e bárbaros. Com a ajuda das novas tecnologias – a câmera do celular, o YouTube, o Instagram e as redes sociais –, essas imagens de crueldade pipocam pelo globo afora. O papel tradicional do fotojornalismo de guerra foi virado de cabeça para baixo: ao invés de expor atrocidades, agora as fotografias as anunciam.
Imagens perturbadoras e inesquecíveis
De outras maneiras, entretanto, dificilmente as imagens da Síria são únicas. Elas são o ponto culminante de uma longa e ignóbil linhagem de fotos agressivas: imagens impiedosas tiradas pelos autores dos tormentos da violência e do sadismo que impõem a suas vítimas impotentes. Algumas dessas fotografias são repugnantemente explícitas e revelam as maneiras pelas quais um corpo humano pode ser destroçado; outras são retratos silenciosos do terror e da impotência diante da morte. Algumas foram tiradas por pessoas que trabalham para governos e registram, impassivelmente, assassinatos em massa; outras, muitas vezes exultantes, foram tiradas por soldados, por sua própria conta, ou por grupos guerrilheiros, paramilitares e organizações terroristas.
A maior e mais escandalosa coleção desse tipo de imagens, combinando as fotografias oficiais e “autônomas”, foi registrada por fotógrafos nazistas, assim como soldados e civis simpatizantes: nos guetos de judeus, no front oriental, nos territórios ocupados e mesmo em alguns campos de concentração (dois fotógrafos oficiais da SS trabalhavam em Auschwitz).
Mais recentemente, militantes da Frente Unida Revolucionária de Serra Leoa, famosos pelas amputações em massa que praticavam em seus conterrâneos, fotografaram a si próprios enquanto cometiam algumas de suas atrocidades. Também o fizeram os ba’attistas de Saddam Hussein, assim como os Escorpiões, uma temível força paramilitar sérvia. Alguns anos atrás, a Hizbul Islam, uma milícia islâmica na Somália, convidou um fotógrafo para documentar a morte por apedrejamento de um homem acusado de adultério; as fotografias que resultaram disso estão entre as mais difíceis de ver que já vi em toda minha vida. E algumas das mais perturbadoras e inesquecíveis imagens do pós-11 de setembro – incluindo a decapitação do repórter Daniel Pearl, do Wall Street Journal, e as fotos de tortura de Abu Ghraib – com certeza cabem na categoria de fotografias agressivas.
Um sonho que se tornou pesadelo
Um outro conjunto de fotografias agressivas expõe o que poderíamos chamar o “olhar tranquilo” de regimes assassinos enquanto cometem seus crimes; essas fotografias nem sempre são abertamente violentas, embora sempre sejam cruéis. A polícia de Stalin fotografava presos políticos condenados, na infame prisão de Lubianka, antes de suas execuções; estarrecidos, olham para nós com tristeza, medo e perplexidade. As recentemente divulgadas fotografias das prisões secretas de Bashar al-Assad, embora muito mais explícitas, cabem nesta categoria. Aqui, uma vez mais, a fotografia torna-se um apêndice na fábrica da morte burocrática.
Há um horror duplo quando se olha para imagens agressivas. Em primeiro lugar, e mais óbvio, elas mostram coisas repulsivas, temíveis, intoleráveis – coisas que gostaríamos de acreditar que os seres humanos são incapazes de fazer uns aos outros. Mas esta repulsa é intensificada quando passamos a saber que aquelas imagens não foram feitas como protestos contra a crueldade, e sim como comemoração, ou pelo menos documentação dela. A própria existência destas fotos prova que tais atos podem ser causa de satisfação, de orgulho e de glória – ou mesmo de diversão. (É chocante o número de sorrisos que aparece nas fotografias nazistas e nas de Abu Ghraib)
É por isso que há uma resistência tão grande em olhar para fotografias agressivas e também um motivo para que sejam muitas vezes postas de lado como “pornografia de tortura” – uma desculpa fácil e que nos alivia da tarefa de olhar as fotos e refletir sobre elas. Elas representam um desafio intenso aos modernos conceitos de universalismo, à crença confortável de que “nós” somos essencialmente os mesmos e que a família humana, ainda que algumas vezes beligerante, pode se unir pelo menos em torno de alguns valores comuns básicos. Mas não somos. As fotografias agressivas revelam como as pessoas podem ser tão imensamente diferentes e como é imensamente fácil suprimir outros da categoria do ser humano. Como um dos simpatizantes de Bashar al-Assad perguntou sobre os cadáveres torturados: “São presos políticos inocentes ou são da al-Qaida?”
Os fotógrafos documentaristas do início do século 20, principalmente os da I Guerra Mundial, acreditavam que a revelação da violência e da opressão levaria a uma ação salvadora. Alguns até sonhavam com um mundo sem guerra e sem exploração. Acho que nunca imaginaram que a câmera pudesse se tornar uma ferramenta com a qual se anunciaria e afirmaria, ao invés de se opor, os aspectos mais horríveis da guerra e os mais temíveis regimes autoritários. Seu sonho tornou-se o nosso pesadelo.
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Susie Linfield é diretora do programa de reportagem cultural e crítica da Universidade de Nova York e autora de The Cruel Radiance: Photography and Political Violence