Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A propaganda de Pequim não é mais a mesma

No início do mês passado, a emissora estatal chinesa Central Television (CCTV) divulgou uma reportagem, com destaque, sobre a indústria do sexo na cidade de Dongguan, no sul da China, conhecida como “capital do pecado”. Os repórteres da CCTV levaram câmeras escondidas para hotéis, saunas e salões de massagem para captar ao vivo cenas de prostitutas desfilando, negociações para serviços sexuais e dançarinas eróticas.

A reportagem da CCTV não foi um furo. A maioria dos chineses sabia da reputação da cidade. Mas no dia seguinte à transmissão, compreendemos o verdadeiro significado: era um prelúdio coordenado a uma ação repressiva do governo ao comércio de sexo. Nos dias que se seguiram, autoridades de várias cidades, pelo país afora, fecharam estabelecimentos e prenderam trabalhadoras do ramo.

A reportagem da CCTV desencadeou uma forte reação na internet, onde críticos atacavam a rede de TV por suas reportagens seletivas, por explorar mulheres e por sua lealdade ao governo. Uma citação que traduziu bem essa disposição tornou-se viral: “As pessoas que vendem a alma sempre desprezaram aquelas que vendem os corpos.”

Uma “figurinha patética”

A gritaria do público foi tamanha que a CCTV achou que deveria reagir. Num raro momento de reconhecimento, disse, num editorial online, que o “desagrado do público era consequência da perda de confiança” na rede. Eu não teria feito melhor. O fato é que muitas pessoas que já tiveram uma fé inquebrantável na CCTV deixaram de confiar nela. Terminou, para nós, a propaganda do governo.

Por mais de 60 anos, a propaganda foi uma das mais importantes ferramentas de Pequim para manter as regras do Partido Comunista. Além de louvar profundamente o governo e o Partido, a propaganda é usada para transmitir instrução moral. Em novembro passado, por exemplo, houve uma enxurrada de reportagens informando sobre os malefícios lascivos dos shows de televisão e do cinema. Rogavam-nos que resistíssemos ao conteúdo vulgar.

Eu costumava pensar que a CCTV era a organização jornalística mais respeitada do mundo. Assim como a maioria das pessoas na China, antes de 1997 – o ano em que chegaram os primeiros serviços dos boletins online – eu não tinha outras fontes de informação senão a CCTV e uma meia dúzia de jornais de propriedade do Estado. Eu confiava incondicionalmente na CCTV.

Quando a CCTV louvava a superioridade do socialismo, eu me sentia abençoado por viver num paraíso socialista. Quando fustigava a corrupção depravada do capitalismo, eu sentia uma profunda solidariedade para com os povos da Europa e da América.

Lembro-me perfeitamente da voz estridente do apresentador comentando o jovem magrelo na frente de uma coluna de tanques na Praça Tiananmen em 5 de junho de 1989: “Se nossos tanques acelerassem”, perguntava ele, “iria aquela figurinha patética deter o seu progresso?” Na época, eu tinha 15 anos. “É isso mesmo!”, pensei. “Os soldados estão sendo misericordiosos.”

Diante dos protestos, a CCTV fica calada

Durante muitos anos, eu desconhecia a existência da BBC, da CNN ou do New York Times. Mesmo quando esses veículos jornalísticos eram mencionados, eu costumava pensar que eram antichineses e controlados por forças hostis no Ocidente. Muita gente na China ainda pensa dessa maneira.

A internet mudou tudo.

Apesar das restrições à internet na China, as informações do mundo exterior vão pingando. Os primeiros tempos dos serviços de boletim pela internet deram lugar ao amplo uso de blogs e plataformas de redes sociais, como o Weibo. Um número cada vez maior de pessoas tem condições de participar de discussões públicas e acessar informações sem a intervenção da máquina de propaganda chinesa.

Minha confiança na CCTV começou a enfraquecer em 1999, quando comecei a ler na internet textos que contradiziam as versões da CCTV sobre a Grande Fome de 1958-1962, que levou milhões de chineses à morte. A CCTV sustentava que, naquela época, a China fora afetada por vários anos de desastres naturais. Descrevia os acontecimentos da Praça Tiananmen de 1989 como “um tumulto contrarrevolucionário”.

Agora vejo as falhas da rede de TV diariamente. A CCTV não disse uma palavra quando o advogado cego Chen Guangcheng foi posto ilegalmente sob prisão domiciliar. Não disse coisa alguma sobre as estranhas circunstâncias da morte do dissidente Li Wangyang. A CCTV continua não divulgando os motivos reais pelos quais 100 tibetanos se auto-imolaram nos últimos anos. E a cada ano, quando milhares de protestos contra injustiças ocorrem por toda a China, a CCTV fica calada.

Governo não está imune à zombaria

Mais recentemente, no dia em que um avião que fazia o trajeto de Kuala Lumpur para Pequim misteriosamente desapareceu, o apresentador do noticiário da CCTV começou o programa com uma matéria sobre o Congresso Popular Nacional. Enquanto a nação procurava, desesperada, informações sobre os 153 chineses que se encontravam no avião, a CCTV optou por transmitir as sessões de votação de um congresso sem vozes discordantes.

Agora, que nossos olhos foram abertos, o povo chinês não se assusta em expressar seu descontentamento. Cada vez mais, os chineses questionam as decisões do governo. Zombam do tom e do estilo da propaganda e resistem aos sermões morais. É justo dizer que, na era da internet, a máquina de propaganda do governo chinês enfrenta uma crise.

Na internet, você encontra textos satirizando o Diário do Povo por acatar as ordens do Partido em 1958 e divulgar safras-recorde enquanto a população morria de uma fome decorrente de medidas políticas. O jornal, entretanto, nunca se retratou ou emitiu um pedido de desculpas – e os internautas não permitirão que isso seja esquecido.

O próprio governo não está imune à zombaria. O Ministério da Propaganda agora é popularmente chamado Ministério da Verdade, em homenagem ao 1984 de George Orwell.

É claro que a CCTV e outros veículos jornalísticos estatais não estão desmoronando. Têm recursos financeiros maciços e continuam gozando de enorme influência.

Não há como deter o controle de informação pelo Partido. Mas o Partido já não controla o meu ceticismo.

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Murong Xuecun é escritor e blogueiro, autor de Deixe-me em paz: um romance de Chengdu