Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O papel e a responsabilidade da mídia diante do Ebola

“A quantidade de cobertura da mídia que dois americanos infectados pelo Ebola receberam foi extraordinária. Talvez seja a maior atenção recebida por um estado de saúde na mídia moderna. Enquanto isso, na África, o surto atual de Ebola se espalha apesar dos esforços locais para controlar a doença, ressaltando nossa confusão entre ameaças de saúde reais e imaginadas”.

O trecho acima é o início de um artigo sobre o Ebola publicado pela Forbes, de autoria de Steve Brozak, presidente de um banco de investimento e empresa de pesquisa especializada em biotecnologia e na indústria farmacêutica. Brozak fala sobre o tamanho do surto: em apenas oito dias, entre 24/7 e 1/8, foram identificados 1.285 novos casos na África e 118 pessoas morreram vítimas da doença. Para além da ameaça real e assustadora do Ebola, no entanto, a primeira frase de seu texto enfatiza um fenômeno impulsionado pela mídia e alimentado pelas redes sociais.

É como resume a blogueira e escritora Leslie Savan em artigo na revista The Nation: “dar a uma doença o ‘tratamento O.J.’ é um sintoma de uma doença da mídia para a qual parece não haver cura”. Leslie se refere ao circo montado pela mídia dos EUA há 20 anos durante o julgamento do jogador de futebol americano O.J. Simpson, acusado de assassinar a ex-mulher.

Os principais canais de notícias americanos – CNN, Fox News e MSNBC – seguiram de perto, com direito a câmeras em helicopteros, a ambulância que carregava o médico Kant Brantly até o hospital em Atlanta. Brantly foi infectado com o Ebola na Libéria e, apesar do tom dramático e exagerado da cobertura de sua chegada aos EUA, entrou pela porta dos fundos do hospital andando, com a ajuda de apenas uma pessoa. Com a chegada do médico e da missionária Nancy Writebol, também infectada na Libéria, aos EUA para que prossigam com o tratamento, o Ebola tornou-se algo próximo para os americanos. Pior: tornou-se real.

“Em vez de dissipar mitos não-científicos e políticos, o instinto em muitos veículos de mídia tem sido pomovê-los”, escreve Leslie Savan. A mídia deveria, segundo ela, mostrar que o Ebola é “uma doença horrível com uma taxa de morte terrivelmente alta porque até agora apareceu apenas na África, onde água limpa, quarentenas à força e suprimentos médicos descartáveis são raros”, e não promover debates com quem acredita que se trata de um castigo divino ou qualquer baboseira do tipo. Celebridades, como o excêntrico empresário Donald Trump, estão entre os que ajudam a promover o medo e a misturar questões médicas com filosofia política. Trump tem usado o Twitter para expressar sua preocupação com o vírus. “Paciente de Ebola vai ser trazido para os EUA em alguns dias – agora eu tenho certeza de que nossos líderes são incompetentes. MANTENHAM ELES FORA DAQUI!”, escreveu o bilionário, completando que “Pessoas que vão a lugares distantes para ajudar são ótimas – mas devem enfrentar as consequências!”.

Nós e os outros

O medo de contaminação é relatado pela professora e escritora Lola Okolosie em artigo publicado no site do jornal britânico The Guardian. Ao voltar à Inglaterra de uma viagem de férias à Nigéria, grávida, Lola teve uma consulta com sua parteira cancelada. “Diante da possibilidade do Ebola, minha parteira foi exageradamente cautelosa. É uma reação que eu consigo entender, então não a julgo ou critico. Já a cobertura midiática do surto não merece a mesma consideração”, escreve.

Ela explica: “Na imprensa, as comunidades que lidam com o vírus estão sendo apresentadas como tendo uma desconfiança irresponsável da medicina ocidental. A sugestão é de que elas são, assim como o continente em que vivem, seu pior inimigo”. Lola defende que a mídia britânica faça mais do que “repetir velhas narrativas sobre a ‘ignorância’ africana” e diz que é compreensível a reação das comunidades africanas atingidas pelo Ebola às equipes médicas estrangeiras. “O medo e a desconfiança de instituições ocidentais são explicáveis no contexto de uma história de exploração por multinacionais e governos coloniais”.

Para Lola, descontextualizar os fatos aumenta o risco de se projetar a imagem da África como “um outro mundo”, a antítese da Europa e, por sua vez, da civilização. “No Reino Unido, comentários deixados em artigos sobre o tema costumam refletir o predominante clima anti-imigração – com a diferença que agora ele é apresentado na moldura da ciência e da saúde pública […] Em vez de nos concentrar na realidade desesperadora das comunidades que estão vivendo com o vírus, nossa atenção se voltou para nós mesmos.”