Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Saída de editor revela crise na First Look Media

O que parecia um projeto promissor para o jornalismo americano acabou se revelando um sistema cheio de problemas. No fim de 2013, o bilionário Pierre Omidyar, fundador do eBay, anunciou que investiria pessoalmente 250 milhões de dólares em uma empresa de mídia com o propósito de criar um site de notícias acompanhado de diversas “revistas digitais”, além de um site que seria seu carro-chefe. A First Look Media reuniu jornalistas talentosos para tocar o projeto, que teria jornalismo independente e investigativo.

Glenn Greenwald, responsável pela divulgação dos documentos secretos do governo americano vazados por Edward Snowden, deixou o tradicional diário britânico The Guardian para participar do projeto, assim como Matt Taibbi, que escrevia para a revista Rolling Stone. Quase um ano depois, no entanto, o site de jornalismo investigativo de Greenwald, The Intercept, foi o único a sair do forno. No fim de outubro, sete meses após sua contratação, Taibbi deixou a empresa, abandonando o projeto da revista eletrônica The Racket, que nem chegou a ser lançado.

A saída de Taibbi causou surpresa, mas, antes que se especulasse demais, foi explicada em detalhes em um longo artigo no Intercept. O texto assinado pelos editores fundadores Greenwald, Laura Poitras e Jeremy Scahill, além do editor-chefe John Cook, relata um caminho de desentendimentos entre Omidyar e os profissionais que contratou para tocar os sites de seu empreendimento.

O bilionário sempre prometeu que a First Look nunca interferiria no conteúdo produzido por seus jornalistas. Como afirma o artigo no Intercept: “Ele foi fiel a este compromisso com o Intercept e a Racket, e Taibbi sabia que podia moldar o jornalismo da Racket à sua imagem. Sua visão era uma revista direta e satírica ao estilo da antiga Spy que abrigaria a habilidade de Taibbi para a zombaria impiedosa, o humor e a paródia para atacar Wall Street e o mundo corporativo. A First Look estava completamente de acordo”.

Cultura corporativa

Os problemas, no entanto, diziam respeito a questões de gerenciamento. Os jornalistas acusam o empresário e sua equipe direta de gerenciar mal a empresa, exercendo “autoridade arbitrária e excessiva” e impondo uma cultura corporativa rígida que dificulta o trabalho jornalístico. A influência de Omidyar era tanta que ele chegava a aprovar pessoalmente gastos com corridas de táxi e materiais de escritório. Taibbi não concordava com o tanto de influência corporativa em seu posto de editor-chefe.

Enquanto a equipe do Intercept conseguiu, aos poucos, argumentar e determinar os limites desta relação, os desentendimentos com Taibbi não teriam encontrado solução. “Após meses de luta e negociação, o Intercept chegou a um ponto em que pode funcionar efetivamente: com completa liberdade editorial e uma verba grande. Mas a First Look e Taibbi não chegaram a este acordo”, escrevem os editores, lembrando que o episódio reflete a dificuldade de encontrar o modelo ideal para o jornalismo independente.

A falta de acordo teria sido provocada, em parte, por um embate de culturas corporativas, sentenciam os editores do Intercept. Trata-se de “uma colisão entre os executivos da First Look, que vêm em grande parte do ambiente corporativo altamente estruturado do Vale do Silício, e de jornalistas independentes que veem a cultura corporativa com desdém”. Isso acontece em muitas redações, escrevem eles, mas, neste caso , foi “exacerbado pela estratégia da First Look de contratar exatamente aqueles jornalistas que cultivaram reputação de iconoclastas anti-autoritarismo”.

Uma das questões pontuais na falta de acordo entre Taibbi e a presidência da empresa – que, além de Omidyar, é formada pelo presidente John Temple e o CEO Randy Ching – teria sido um período de congelamento de contratações. Os dois projetos da First Look foram avisados, em abril, que não poderiam contratar novos profissionais durante três meses para que a companhia pudesse repensar sua direção e seus “valores”. Tanto Taibbi quanto Cook estavam no processo de contratação de suas equipes, e a proibição foi vista como um exemplo claro do excesso de autoridade da presidência da empresa sobre seus sites. (Posteriormente, Omidyar afirmou que não havia ordenado o congelamento e que a ordem havia sido um mal entendido).

Acusação de abuso

Para piorar a situação, em outubro uma funcionária da Racket queixou-se à administração da First Look sobre o comportamento de Taibbi, que acusou de abuso verbal e de hostilidade profissional; ela acreditava que tal comportamento era motivado, em parte, por ela ser mulher.

Os editores do Intercept deixam claro, no entanto, que nunca presenciaram tal comportamento abusivo e que a funcionária não quis ser identificada no artigo ou falar sobre o caso. Em um adendo no fim do texto, Taibbi também é defendido por Alex Pareene, editor-executivo da Racket, que afirma que nunca testemunhou “qualquer comportamento que pudesse ser caracterizado como ‘abusivo’”. “Sua hostilidade era destinada a seus superiores, não a seus subordinados. Ele certamente não era mais ‘combativo’ do que diversos editores com que trabalhei, incluindo o editor-chefe do Intercept, John Cook”, escreveu.

Dias após a saída de Taibbi da First Look, a Rolling Stone confirmou que ele voltará a escrever para a revista. O futuro dos projeto da empresa de Omidyar é incerto: há alguns meses, o empresário afirmou que estava revisando o foco da companhia e construindo um ambiente para promover o desenvolvimento de novas tecnologias para distribuição e consumo de notícias. E ainda que tenha dito que seu compromisso com o Intercept e com a Racket continua firme, deixou claro que, a curto prazo, não serão lançadas mais revistas digitais. A ideia do site “carro-chefe” também foi abandonada.

“A maior parte dos jornalistas contratada pela First Look teve a impressão de que estaria se unindo a uma grande e ambiciosa organização de notícias, e a mudança deixou muitos funcionários profundamente preocupados quanto ao compromisso da companhia com o jornalismo e confusos quanto a sua missão”, concluem os editores do Intercept.