Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Equipe russa faz jornalismo independente na Letônia

“As notícias estão de volta” – esse é o slogan do Projeto Meduza, organização jornalística independente em língua russa lançada em outubro na Letônia, no que pode ser considerada a primeira reação jornalística importante à recente repressão do governo russo à mídia.

Liderado por Galina Timchenko, ex-editora-chefe do site de notícias Lenta.ru, o Meduza é tocado por uma equipe de cerca de 20 jornalistas. Eles encontravam-se entre os quase 70 repórteres do Lenta.ru que se demitiram coletivamente em março após a inesperada demissão de Galina pelo oligarca Alexander Mamut, dono do site e aliado do presidente Vladimir Putin. A súbita demissão da editora-chefe, ao que consta em consequência de uma discussão entre ela e Mamut sobre a cobertura da crise na Ucrânia, foi um momento decisivo para o panorama da mídia russa.

Durante os meses que se seguiram, equipes jornalísticas inteiras demitiram-se de seus jornais em protesto contra a censura, súbitas reorganizações foram feitas no comando de patrocinadores de jornais e foi introduzida pelo governo uma porção de leis para aumentar o controle sobre a distribuição de informação.

Para evitar possíveis bloqueios, o Meduza – que agrega notícias da mídia em língua russa, além de produzir seu próprio conteúdo – conta com um site e um aplicativo. O governo russo pode obrigar provedores de internet a banir sites considerados “extremistas”; esse tipo de legislação “antiterrorista” já foi utilizado para bloquear o blog do ativista de oposição Alexei Navalny, em março. Mas como é impossível banir aplicativos, é quase garantido que o projeto Meduza possa ser distribuído em território russo sem restrições.

Segundo Vlad Strukov, professor de cultura digital na Universidade de Leeds, na Inglaterra, o comportamento do governo russo é coerente com sua estratégia para a mídia desde os protestos de rua na Praça Bolotnaya, em 2011, que sacudiram a Rússia até 2013. Embora ainda permita que circule informação na internet, o governo “aumenta sua presença na mídia, criando uma situação em que sua voz é mais forte e soa mais alto do que qualquer outra”, diz Strukov.

“Somos contra a propaganda de ambos os lados”

Numa entrevista ao Calvert Journal, Ivan Kolpakov, um dos fundadores do Projeto Meduza, fez reservas em relação à expectativa de um plano alternativo, caso o site seja banido na Rússia: “Nós discutimos um plano alternativo para o caso disso acontecer, e temos algumas ideias. Mas não posso entrar em detalhes. Gostaria de enfatizar que preferiríamos ter ficado na Rússia, mas atualmente Moscou não é o melhor lugar para um veículo político e social independente.”

A saída do projeto Meduza da Rússia é não só ideológica, mas também geográfica. A equipe pretende se manter como uma organização jornalística pequena e com mobilidade. O objetivo não é produzir uma réplica do site Lenta, e sim criar algo novo para um panorama de mídia que muda rapidamente. “Não podemos e não queremos criar um novo Lenta. O site Lenta precisou de 15 anos e muitos recursos para se tornar o principal jornal da Rússia”, disse Kolpakov ao Calvert Journal. “O projeto Meduza é um navio pirata, uma organização jornalística pequena e com mobilidade. Um veículo que tenta produzir um jornalismo de qualidade”.

É revelador que, embora a conta do Twitter do projeto Meduza já tenha quase 40 mil seguidores, siga apenas 10 perfis. A equipe parece querer guardar suas lealdades bem guardadas, e não fazer delas uma plataforma para oposição política. “Somos contra a propaganda de ambos os lados”, disse Kolpakov. “No entanto, não vamos fingir que o governo russo e a oposição estão nas mesmas condições, nem que a luta seja leal. Pessoalmente, acho que é um conflito entre a serpente e o coelho.”

Reivindicar uma mídia noticiosa roubada pelo Estado

Assim como no que se refere a posições políticas, a equipe do Meduza mantém bem escondidos os seus patrocinadores. Notícias sobre o projeto circularam em julho deste ano depois que o site de notícias Gazeta.ru divulgou que o ex-magnata do petróleo Mikhail Khodorkovsky pretendia financiar um novo projeto jornalístico com base na Letônia, a ser liderado por Galina Timchenko. Esta, na época, negou qualquer envolvimento. Boris Zimin, fundador da empresa de telecomunicações Beeline, também foi citado como estando em negociações sobre o projeto, embora Galina tenha negado seu envolvimento.

Em entrevista à versão russa da revista Forbes em setembro, a jornalista confirmou que Khodorkovsky era um investidor passivo, mas recusou-se a citar qualquer outro apoiador: “Seus nomes não serão ditos a ninguém. São personalidades estritamente privadas que não têm nada a ver com mídia ou política”. Kolpakov acrescentou: “Não posso dizer se os investidores do projeto Meduza são russos ou estrangeiros. Há uma grande discussão sobre nossos investidores entre jornalistas russos e alguns dizem que deveríamos dizer às pessoas quem eles são. Num mundo mais justo, provavelmente é o que faríamos, mas não na Rússia, em 2014. Temos que proteger nosso produto e temos que proteger nossos investidores.”

Num ambiente de mídia cada vez mais dominado por aliados do Kremlin, a discrição da equipe nada tem de surpreendente. Após a aprovação de uma lei, em setembro, que limita a participação estrangeira em organizações jornalísticas russas a 20%, a influência externa é, cada vez mais, mal vista na Rússia. Assim como uma crescente desconfiança nos Estados Unidos e no Ocidente, a retórica do Kremlin flertou com a ideia de “desligar a Rússia” da internet, à qual Putin se referiu como “um projeto da CIA” no início deste ano.

“Ainda veremos mais [jornalistas russos irem para o exterior]”, diz o professor Vlad Strukov, da Universidade de Leeds. “Um dos motivos é que a situação da mídia na Rússia é desagradável para eles. Por um lado [sua saída] é uma reação a uma situação sufocante na Rússia, e, por outro, é mais um passo no processo de globalização do qual a Rússia faz parte.”

Se o projeto Meduza conseguirá ou não sobreviver num panorama de mídia tão imprevisível ainda se verá. O que é certo é que o projeto, como ponto de partida de uma mídia de língua russa cada vez mais dominada por uma voz pró-governo, foi criado com um objetivo: reivindicar uma mídia noticiosa que foi roubada pelo Estado. Talvez a melhor maneira de resumir o novo projeto sejam as palavras finais que se sobrepõem ao vídeo colocado pela equipe no YouTube, logo após seu lançamento: “Não é nada de pessoal. São só os fatos.”