No movimento antidemocrático mundial, a imprensa livre talvez seja a instituição mais vulnerável e os jornalistas, as pessoas mais descartáveis. Se desempenharem seu trabalho de uma forma correta, terão poucos amigos em posições de poder. Os jornalistas só se tornam úteis e confiáveis para governos, empresas ou organizações armadas quando traem sua profissão. Eles, inclusive, raramente gozam de uma base de apoio entre o público em geral. Em alguns lugares, é impossível divulgar a verdade sem se transformar num objeto de ódio e em alvo de violência para uma parcela ou outra da sociedade.
Nos últimos anos, a divulgação de notícias tornou-se uma atividade cada vez mais perigosa. Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), 506 jornalistas foram assassinados no mundo entre 2002 e 2012, contra 390 na década anterior. Mesmo nas mais violentas zonas de guerra, como o Iraque e a Síria, as mortes acontecem por assassinato puro e simples, e não decorrentes da cobertura de um confronto. Uma mudança importante que ocorreu ao longo dos anos desde o 11 de setembro de 2001 foi o enfraquecimento de uma ideia normalmente aceita – a de neutralidade da imprensa. Atualmente, para muitos combatentes, principalmente os da guerra santa islâmica, os jornalistas são considerados alvos legítimos e ferramentas de propaganda valiosas, mortos ou vivos. Os casos mais conhecidos envolvem repórteres ocidentais, de Daniel Pearl a James Foley, mas dos jornalistas que correm o maior perigo provavelmente os leitores nunca ouviram falar – o repórter de Tijuana, no México; o cinegrafista em Karachi, no Paquistão; o blogueiro em Teerã, capital do Irã.
Joel Simon, diretor-executivo do CPJ, publicou recentemente um livro intitulado The New Censorship: Inside the Global Battle for Media Freedom (A nova censura: dentro da batalha global pela liberdade de imprensa). É estranho falar do crescimento da censura numa época em que eleições são comuns no mundo todo, em que as liberdades individuais crescem mesmo em países repressivos, como a China, em que a internet e as redes sociais inundam nossas cabeças com informações de todo tipo a cada centésimo de segundo e em que qualquer pessoa com uma conta no Twitter ou uma página no Facebook pode ser um jornalista. Mas Joel Simon defende de maneira convincente a ideia de que a tendência global é diminuir, e não aumentar, a liberdade de imprensa. “Submersos em informações, ficamos cegos em relação a uma realidade mais ampla”, escreve Simon. “Novos sistemas de controle vêm sendo criados em todo o mundo. Eles sufocam o diálogo global e impedem o desenvolvimento de políticas e soluções baseadas na compreensão de informações sobre realidades locais. A repressão e a violência contra os jornalistas nunca foi tão grande e a liberdade de imprensa vem diminuindo.”
“Jornalistas são menos essenciais e mais vulneráveis”
O livro A nova censura explica, em termos gerais, quatro motivos para isso. O primeiro é a ascensão de líderes políticos eleitos, como Vladimir Putin, da Rússia; Recep Tayyip Erdo?an, da Turquia; e os presidentes esquerdistas da Venezuela, do Equador e da Bolívia, que usam de seus poderes para intimidar jornalistas independentes, tornando seu trabalho praticamente impossível. Exploram seus mandatos democráticos para governarem como ditadores – ou “democradores”, como os chama Joel Simon. E fazem isso não só por meio da manipulação, das denúncias e da prisão de repórteres críticos, mas também criando um ambiente em que a liberdade de imprensa é considerada uma espécie de quinta coluna no corpo político – algo importado do Ocidente que, na melhor das hipóteses, serve de ferramenta de propaganda para interesses estrangeiros –, introduzindo valores alheios e disseminando o caos – e, na pior das hipóteses, boicotando a segurança e o orgulho nacionais.
Demagogos como Putin ou Erdo?an criam tiranias da maioria de tal forma que a posição dissidente de uma imprensa independente, que seria a normal, é facilmente isolada, contaminada com associações estrangeiras e acusada pelas mazelas sociais. A ideia de que a liberdade de imprensa, assim como outras liberdades públicas, é uma ideologia especificamente ocidental, e não um direito universal, é cada vez mais comum, de Caracas a Pequim. Devido ao apoio popular que têm, esses líderes gozam de certa proteção contra as campanhas de denúncia mais conhecidas, que são aquelas direcionadas a ditadores como Kim Jong-un, da Coreia do Norte, ou o rei Abdullah, da Arábia Saudita.
A segunda fonte da censura, segundo Joel Simon, é o terrorismo. A decapitação de Daniel Pearl em Karachi deu início a uma tendência de tornar os jornalistas alvos específicos de grande valor. A guerra do Iraque – a mais letal, na história dos jornalistas, com 158 mortos, 85% de iraquianos e tratando-se, na maioria dos casos, de assassinatos – piorou essa tendência, tornando o sequestro e a execução de repórteres parte de um panorama normal da mídia. (Em minha opinião, ocorreu um momento crucial quando eu estava cobrindo a guerra no Iraque, no início de 2004, e compreendi que o adesivo de imprensa no para-brisa de meu carro não oferecia proteção alguma e talvez fosse um convite a complicações; pedi a meu motorista iraquiano que o retirasse.) Na Síria, onde muitos repórteres estrangeiros e muitos mais sírios foram sequestrados e mortos, as funções essenciais ao jornalismo praticamente acabaram.
Na realidade, a extrema violência do atual conflito é amplificada pelo progresso tecnológico. Os grupos armados já não têm motivos para manter os jornalistas vivos, pois têm seus próprios meios de “contar a história”: podem colocar vídeos em redes sociais, publicar suas próprias reportagens online e enviar mensagens a seus seguidores pelo Twitter, já que sabem que, de qualquer maneira, a imprensa internacional irá selecionar as matérias mais sensacionalistas. “Os vínculos diretos entre os produtores de conteúdo e os consumidores tornam possível que os grupos violentos se antecipem à mídia tradicional e cheguem ao público através de salas de chat ou websites”, escreve Joel Simon. “Os jornalistas tornaram-se menos essenciais e, consequentemente, mais vulneráveis.”
Nos EUA, a avaliação da imprensa é baixa
Outra vítima das mudanças tecnológicas foi a sucursal do jornal no exterior – a presença de um grande número de correspondentes em lugares como São Paulo, Nairóbi e Jacarta. Joel Simon começou como correspondente, no início da década de 90, na Cidade do México. O sistema era, obviamente, ineficiente, com uma ou duas dúzias de repórteres norte-americanos escrevendo sobre o mesmo assunto para os jornais de seu país e, portanto, destinado ao fracasso. No entanto, à medida que a mídia tradicional fechava suas sucursais pelo mundo afora, a reportagem com um viés crítico ficou entregue aos repórteres locais. Muitos deles são talentosos, empreendedores e corajosos e, muitas vezes, têm maior capacidade do que seus colegas ocidentais para conseguir fontes e ir ao fundo da matéria.
Mas sua posição também é muito mais precária. Não contam com organizações jornalísticas ricas nem com a influência de governos estrangeiros para os apoiarem. O único governo que conhecem – o seu – talvez os queira ver mortos. Em países como o México, as Filipinas e o Paquistão, os jornalistas locais são alvo de campanhas brutais de intimidação e assassinato por parte de sombrios serviços secretos ou grupos armados, de narcotraficantes a radicais islâmicos.
E, por fim, há a mão global e invisível da vigilância digital. Os chineses aperfeiçoaram seu uso; os iranianos vêm melhorando progressivamente. Nos Estados Unidos, com as revelações feitas por Edward Snowden, há uma sensação penetrante de ser monitorado, o que levou muitos jornalistas a usar a criptografia como rotina para proteger suas fontes. E há um conjunto de sinais ambíguos de origem no atual governo norte-americano, que promete jamais prender jornalistas que venham fazendo o seu trabalho, mas utiliza o considerável poder do Estado para fazer cessar um vazamento que considere prejudicial. Na era da coleta maciça de dados e das constantes mudanças da definição de jornalismo, ninguém sabe ao certo quais são as regras ou como podem ser transgredidas e violadas.
O livro de Joel Simon confirma uma ideia que tenho sobre o destino das instituições na era da informação. Apesar de sua promessa de libertação, democratização e nivelamento, a revolução digital, ao boicotar as formas tradicionais da mídia, produziu, na realidade, uma maior concentração de poder num menor número de pessoas com menor poder de contrabalançar as pressões. Consequentemente, as maneiras de silenciar a imprensa, também conhecidas como censura – sejam elas adotadas por autocratas, extremistas armados, ditadores obsoletos ou promotores fazendo cessar vazamentos por meio de provas eletrônicas – são mais fáceis e mais frequentes hoje do que eram vinte anos atrás.
Nos Estados Unidos, a avaliação da imprensa é perpetuamente baixa, mesmo quando desempenha corretamente o seu trabalho. Apesar do poder da Agência Nacional de Segurança (NSA) e do Google, aqui não se trata de um problema de censura. Nosso problema não são os “democradores” ou os simples assassinatos. Nosso problema está na perda dos fatos – um corpo de informação empírica que os cidadãos norte-americanos possam aceitar como ponto de partida para um debate público. Nosso problema está na perda de confiança de que nossas instituições possam ser remanejadas e reformadas sob uma pressão supervisionada da imprensa independente. Nosso problema está em líderes irresponsáveis e num público ignorante. A erosão da democracia pode ocorrer de várias maneiras – a mais difícil de ser percebida pode estar bem na nossa frente.
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George Packer é escritor e jornalista. Ele escreve para a New Yorker desde 2003