As manchetes da Folha de S.Paulo e do Estado de São Paulo não poderiam ser mais diferentes no último domingo, 13 de março, quando milhares (ou milhões?) de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo Dilma Rousseff, contra Lula e o PT.
Em sua página na internet, o jornal da família Mesquita preferiu o tom ufanista da “Maior manifestação da história do país”, enquanto a Folha apresentou texto mais equilibrado, à luz dos dados recolhidos pelo seu instituto de pesquisa, o Datafolha.
O primeiro parágrafo das matérias já denota a diferença qualitativa da cobertura executada pelos dois veículos:
“Na maior manifestação da história do País, milhões de brasileiros foram às ruas neste domingo, 13, em pelo menos 239 cidades nas cinco regiões, pedir a saída da petista Dilma Rousseff, 68 anos, da Presidência da República. Os protestos também tiveram como alvo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fundador e principal líder do PT, investigado pela Operação Lava Jato e pelo Ministério Público de São Paulo”.
(Estadão Online, 13/03/2016 ).
“Apesar do crescimento do tamanho do protesto contra a presidente Dilma Rousseff, o perfil dos manifestantes que foram à Avenida Paulista neste domingo (13) se manteve elitizado. Os dados são de pesquisa do Datafolha feita por meio de 2.262 entrevistas durante o ato.
(Folha Online, 13/03/2016)”.
O Estadão apresenta um texto mais adjetivado, contaminado e “rico” em análises políticas sem fontes creditadas. O texto fala em “divisão dos manifestantes” entre as propostas de impeachment via Câmara dos Deputados ou cassação da chapa eleita pelo TSE; afirma que a adesão aos protestos “praticamente enterrou o discurso governista e petista de que o País está dividido” e ainda, que a nota de Dilma “comprova uma inflexão do governo” em reconhecer o apoio ao protesto, em relação a 2015, quando um ministro afirmou que as passeatas eram coisa de “eleitores do Aécio”.
Já a Folha afirma que as manifestações cresceram e são maiores que as Diretas Já, mas o gancho da reportagem é o perfil do manifestante: branco, com ensino superior (77%), com renda maior que cinco salários mínimos (63%), e com mais de 35 anos (73%). “A exemplo das outras grandes manifestações contra Dilma ao longo do ano passado, os manifestantes deste domingo tinham renda e escolaridade muito superiores à média da população”.
Contagem de multidões e credibilidade
A contagem de participantes em protestos de rua sempre foi uma questão polêmica para a imprensa. Há alguns anos, os jornais limitavam-se apenas a divulgação dos dados oficiais (em geral, da PM), gerando críticas por parte dos organizadores dos protestos, e consequentemente, problemas de credibilidade para os veículos. Eventos de massa poderiam ser retratados na imprensa com público muito menor, com objetivo político-mediático de “jogar para baixo” a adesão popular às manifestações, e vice-versa.
Não é possível determinar, em termos gerais, se essas alterações eram de responsabilidade da própria imprensa ou das Polícias Militares. O fato é que a objetividade e exatidão dos dados oferecidos ao público ficavam reféns das “subjetividades” do departamento de comunicação das PMs.
Isso começou a mudar com os protestos de junho de 2013. Num primeiro momento, a imprensa em geral apresentou cobertura criminalizatória dos protestos (tendo como ápice o comentário de Arnaldo Jabor). Quando as redes sociais passaram a transmitir os eventos ao vivo e integrantes da imprensa passaram a ser agredidos violentamente, houve um “cavalinho de pau” na cobertura. Nesta ocasião – e por conta dos ânimos acirrados daquele cenário – o Datafolha passou a contar multidões a partir de uma metodologia mais clara, e explicou aos seus leitores como o fazia.
Bom exemplo deste “sentimento” é a comparação entre as estimativas dos organizadores e da PM em dois eventos supostamente antagônicos: a Marcha para Jesus e as Paradas da Diversidade. Em 2015, os organizadores do evento LGBT estimaram dois milhões de pessoas na capital paulista. A PM, 20 mil (ou apenas 1% da estimativa dos organizadores). Já na Marcha Para Jesus de 2012, os organizadores estimaram 6,5 milhões de participantes, e a PM, em dois milhões.
Neste sentido, é elogiável a iniciativa do grupo Folha, que buscou desenvolver uma metodologia mais factível para contagem de público em eventos de grandes proporções, buscando a exatidão do relato jornalístico. A iniciativa levou até mesmo à revisão do público participante das Diretas Já (na época, estimado em um milhão, e hoje, pelo Datafolha, calculado em 400 mil). Na comparação com os dados da PM Paulista, que falou em 1,4 milhão de pessoas, o Datafolha trouxe os dados para patamares mais factíveis.
Evidentemente, é impossível negar a dimensão dos protestos contra o governo Dilma. Não é intenção deste artigo tentar deslegitimar o protesto a partir da premissa de que “não era tanta gente assim”. A crítica aqui é ao engajamento mais explícito de veículos como Estadão, buscando causar impacto no seu público a partir de informações provavelmente falsas ou pouco verossímeis, até mesmo quando outras fontes mais qualificadas diziam o contrário.
Não se trata apenas de ignorar os números (ou citá-los no pé da matéria) de um concorrente direto. Trata-se de falsear a realidade para cumprir determinados objetivos políticos. É incorreto e inverossímil chamar as manifestações anti-PT de “as maiores da história”. A barrigada não só foi replicado em vários veículos do país como seu método pouco verificável foi utilizado em coberturas regionais — é pouco factível, por exemplo, que 35 mil pessoas em Jaraguá do Sul tenham saído de casa para protestar contra Dilma Rousseff, apesar dos protestos terem sido gigantescos.
Outros eventos de cunho político e reivindicatório, como as já citadas Paradas da Diversidade e Marchas para Jesus atraíram muito mais pessoas pelas estimativas da época (também, da PM). Mesmo com caráter supostamente “festivo” ou de “louvor”, estas passeatas tem um cunho político bem definido: buscam a ampliação (ou restrição) de direitos para populações específicas (LGBTs e Mulheres). Mesmo se o parâmetro for à contagem da PM, como pode o ato anti-Dilma – com 1,4 milhão de pessoas – ser maior que a Parada da Diversidade de 2006 (2,5 milhões) ou até mesmo a Marcha para Jesus de 2011 (5 milhões)?
Neste sentido, o Estadão não contribuiu para o debate público em momento tão delicado da política nacional. O jornal optou por uma tática de desinformação com vistas a ampliar a repercussão dos protestos, replicada acriticamente por jornais que compram conteúdo da Agência Estado em todo o Brasil, para prejuízo dos leitores e da sociedade.
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Leonel Camasão é mestrando do POSJOR/UFSC e pesquisador do ObjETHOS