Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A dissimulação golpista e o novo governo

Machado de Assis criou a personagem Capitu como trama judicial-passional do romance Dom Casmurro. Capitu é dissimulada, plástica, como a própria narrativa machadiana, ironicamente estruturada. Lima Barreto criou o personagem Castelo, em seu conto O homem que falava javanês. Um personagem farsante, que finge que sabe o que não sabe: falar javanês.

Embora as narrativas mencionadas, assim como seus autores, sejam um verdadeiro milagre, tal a qualidade universal, na periferia do sistema-mundo, de suas produções literárias, o erro político-estético dos dois escritores brasileiros foi o de apresentá-los negativamente, sem levar em consideração o fato de que eram sem lugares, despossuídos de capital econômico e simbólico.

Por mais linear que pareça minha leitura, não hesito em objetivar o fato de que Machado de Assis identificou a dissimulação numa personagem feminina, Capitu, filha de uma família de agregados, pobre, confirmando assim um preconceito comum em qualquer época histórica: o agregado, sem propriedade, é perigoso e dissimulado, além de ser potencialmente um traidor.

Por sua vez, Lima Barreto errou ao apresentar o personagem Castelo como um falastrão, uma espécie de poliglota-monoglota, que finge saber uma língua que não sabe a fim de conseguir algum dinheiro para sobreviver numa sociedade tão inóspita e adversa, para as classes não proprietárias, como o Rio de Janeiro do início do século passado; ou o de hoje.

O verdadeiro cara de pau

Considero, assim, que os dois escritores, não obstante a potência criativa de suas penas, cometeram um equívoco lastimável porque narraram personagens pobres sob o ponto de vista platônico do verdadeiro e do falso pretendente, tachando-os como falsos pretendentes. A propósito, Platão tinha por conta que o verdadeiro pretendente à filosofia era, em princípio, ele mesmo, ou um igual suposto verdadeiro pretendente que tivesse o mesmo perfil de classe dele: um aristocrata da filosofia, que vendia filosofia para aristocratas, os filhos da nobreza. Àqueles outros filósofos que confundiam filosofia com mera retórica e a trocavam por um prato de comida, Platão não teve pejo em chamá-los de falsos pretendentes à filosofia. Eram os filósofos sofistas, trabalhadores comuns, não aristocratas, do saber; que vendiam a filosofia para qualquer um.

Invertendo o platonismo de Machado de Assis e de Lima Barreto, Capitu e Castelo são personagens fabulosos não porque sejam falsos pretendentes, mas porque não são os verdadeiros pretendentes das classes dominantes. São extraordinários precisamente porque são falsos pretendentes e por terem feito uso da potência do falso, para usar uma expressão cara a Deleuze e Guattari, para intensificar suas vidas ficcionais de jogo, garra, coragem, plasticidade, vontade de viver, sem medo de ir à luta numa sociedade tão preconceituosa, excluidora, despótica.

Num mundo de extorsão da riqueza comum, de proprietários, agregados, escravos e excluídos, o verdadeiro pretendente, pelo simples fato de assim se apresentar, é o verdadeiro cara de pau: é o mentiroso por excelência, o fingido, o farsante, o dissimulado, o traidor, tanto mais porque tem o apoio dos valores e instituições dominantes, como eco de eco da farsa geral.

O bote está armado

O verdadeiro pretendente, ou que assim se considera, ele sim, é perigoso; ele sim, é capaz de mudar da água para o vinho, num instante, ora podendo ser violento, assassino, canibal, rapina, venenoso, golpista; ora podendo se apresentar como um santo do pau oco, educado, bem comportado, inteligente, sensato, racional, sedutor, amigo, democrata, e assim por diante.

No sistema televisivo brasileiro, a TV Globo se apresenta como a verdadeira pretendente, ‘Globo e você’, a comunicar, noticiar e narrar o Brasil e o mundo, razão mais que suficiente para, sem cessar, realizarmos a análise de suas estratégias de dissimulação, interpretando suas mentiras, seu fingimento, seu disfarce, sua farsa, a fim de, sem inocência, delinearmos antecipadamente o movimento réptil de seu bote a tudo que lhe parece falso pretendente; a tudo, enfim, que brote como esperança, vontade de viver, garra, coragem, justiça.

A TV Globo é, simultaneamente, ‘a TV que fala javanês’, uma farsa; e a Capitu do sistema de desinformação e de manutenção dissimulada do lado colonizado, pobre, humilhado, miserável do Brasil, embora sempre se apresente como o Castelo.

É preciso dar nomes aos bois: Jô Soares é ‘o homem que falava javanês’ da TV brasileira. Seu poliglotismo é farsa, é fingimento, é mimetismo de um brasileiro que se apresenta como o verdadeiro pretendente a se identificar, como um papagaio, com os colonizadores de plantão, como se fossem os paladinos da civilidade, do saber, da democracia e assim por diante.

Depois de ter mostrado suas sucessivas garras durante os oito anos do governo Lula da Silva, é de se esperar que estejamos vacinados para saber que, nos momentos de trégua, a TV Globo sempre veste a roupa do cordeiro, da simpatia, para, em coro, supostamente dar boas-vindas ao governo Dilma. Ledo engano: o bote está armado. A serpente global é a própria dissimulação, embora tenha plasticidade e capacidade de produzir efeitos especiais para mostrar o contrário: ser bem intencionada e francamente comprometida com o povo brasileiro.

Três estratégias ou dissimulações comuns

Sua dissimulação, por estar apoiada nos valores dominantes, é, poderíamos dizer, instantânea, não reativa, razão pela qual é possível afirmar que seja, por paradoxal que pareça, uma dissimulação natural, porque é dissimulada vinte e quatro horas por dia; trezentos e sessenta e cinco dias por ano, em cada programa de sua grade, seja de auditório, seja jornalístico, seja ficcional, seja publicitário; pela simples razão de que é uma ‘naturalizada’ dissimulação de classe dominante.

E naturalizada porque a classe dominante é sempre, valendo a redundância, naturalmente dissimulada. Ela não existe senão como dissimulação e farsa em sua existência concreta, uma vez que nada justifica, absolutamente nada, a extorsão/apropriação da riqueza comumente produzida.

As classes dominantes, assim, são a dissimulação encarnada.

Como a TV Globo é, por excelência, o meio de desinformação e dissimulação das classes dominantes brasileiras, a verdadeira pretendente a tal, todo cuidado, portanto, é pouco, para o governo Dilma, que deve estar atenta a três estratégias ou dissimulações comuns e onipresentes da TV Globo, se quiser que seu governo tenha êxito, que seja um governo de êxitos, bem entendido, para as classes populares, para o povo brasileiro, esse falso pretendente que insiste e persiste, apesar de tudo.

Considero que as três principais estratégias dissimuladas da TV Globo são:

  1. O esquecimento
  2. Claro que o esquecimento não é uma estratégia específica da TV Globo, mas de toda classe dominante. É muito fácil esquecer os crimes cometidos quando se ocupa uma posição social privilegiada.

    Passar uma borracha, por exemplo, nos sucessivos golpismos literalmente programados pela TV Globo contra Lula e seu governo, e também contra a presidenta Dilma na última eleição, é muito tranquilizador, para não dizer hipócrita, se considerarmos que tudo fica como antes no quartel de Abrantes: sem punição, sem ao menos a necessária coragem para evidenciar o óbvio: uma concessão pública foi utilizada parcialmente para beneficiar um candidato francamente comprometido com interesses ocultos internos e externos, tendo utilizado toda sorte de estratégia para dissimular não ser o que na verdade sempre foi: o partido político das multinacionais, dos banqueiros, da oligarquia, dos colonizadores.

    Se, a propósito, em seu discurso de posse, Dilma disse que não tem ressentimentos, esperemos que sua fala seja apenas um efeito retórico, uma estratégia, porque o ressentimento nem sempre é negativo. Se o ressentimento é não esquecer uma ofensa sofrida, Dilma não pode se dar ao luxo de esquecer, de fazer o jogo da dissimulação e farsa globais, pela simples razão de que o bote está armado: como toda classe dominante que perde uma batalha, a TV Globo é ressentida, sente-se profundamente ofendida, razão pela qual seu esquecimento é uma dissimulação de esquecimento. Na primeira encruzilhada, assim que virar as costas, o bote da serpente surgirá impiedoso e venenoso.

    Não tenhamos dúvida!

  3. A verdadeira pretendente
  4. A TV Globo procura, com toda a cara de pau possível, apresentar-se como a verdadeira pretendente a se tornar a interlocutora da agenda do governo Dilma.

    Após o primeiro passo, o de borrar o partidarismo direitista levado a cabo na última eleição, através de sucessivas tentativas de golpes eleitorais contra a candidata Dilma, a estratégia da vez da ressentida TV Globo é a de agenciar todo seu poder de barganha para se apresentar como a interlocutora por excelência do recente governo Dilma, a fim de, direta ou indiretamente, ser o principal ministro de seu governo, para não dizer ser a própria presidenta Dilma em ação global, dissimuladamente.

    Essa estratégia está em pleno andamento e tem múltiplas faces programadas, embora ocorra através de dois eixos complementares: um primeiro que consiste em requisitar a opinião supostamente bem balizada de ‘verdadeiros pretendentes’ ou especialistas econômicos, administrativos, políticos, financeiros, que aqui e ali aparecem e aparecerão para dizer como deve ser, o que deve ser feito, e assim por diante; a segunda, por sua vez, consiste em contrapor, como um teatro de marionetes, as supostas opiniões bem balizadas e apresentá-las dissimuladamente, como verdades cristalinas, necessárias, para integrantes do governo Dilma, a fim de que estes tenham como referência, para agirem efetivamente, as supostas verdades cristalinas dos especialistas globais.

    Assim se monta o teatro global de uma agenda de governo.

    Principalmente em seu primeiro mandato, Lula caiu como um patinho nessa já surrada estratégia global, razão pela qual seu primeiro mandato foi de traição aos interesses do povo brasileiro. Não é verdade, assim, o mito-clichê de que o primeiro mandato do Lula foi difícil porque foi o momento da arrumação da casa. Nada mais equivocado. Foi um mandato de traição porque seguiu a agenda das classes dominantes, ecoando a TV Globo como verdadeira interlocutora de seu mandato. Carta aos Brasileiros, o documento político-confessional do governo Lula, expedido ainda como candidato, em sua primeira vitória eleitoral, nada mais foi que uma carta aos banqueiros, aos rumores do mercado de ação, às multinacionais, à TV Globo, ao governo americano.

    Tudo, menos, efetivamente, que uma carta aos brasileiros!

    O sucesso do governo Lula, sua projeção internacional, certamente não tem nada a ver com a agenda de traição de seu primeiro mandato, posto que emergiu da crise dessa agenda, da impossibilidade de segui-la, na íntegra, porque os ‘verdadeiros pretendentes ‘a dominar-governar o Brasil estavam, em qualquer circunstância, sempre preparados para o golpe.

  5. O golpismo sem fim

Em consequência direta da primeira e da segunda estratégias, o golpismo sem fim vem à tona. Primeiro a TV Globo monta o cenário televisivo do esquecimento dos golpes anteriores. Em seguida, apresenta-se como a verdadeira pretendente à interlocutora geral do governo, para, como golpe final, vir com o bote.

O golpe será fatal, por sua vez, se o governo do falso pretendente (ou aquele cuja promessa era/é de fazer justiça aos falsos pretendentes, aos pobres) insistir em ser o governo do verdadeiro pretendente, ao seguir cegamente a agenda estabelecida pelas classes dominantes.

E por uma razão muito simples: as classes dominantes são essencialmente corruptas.

Elas só existem através da corrupção, porque não existe corrupção mais evidente que concentrar riquezas e pactuar com toda sorte de interesses mafiosos, como os das multinacionais, dos banqueiros, de grandes empresários corruptos e, antes de tudo, os interesses dos colonizadores.

Como uma mestra em dissimulação, a TV Globo sabe que a sua agenda é essencialmente corrupta, de modo que, ao assumi-la, o governo da vez se torna naturalmente corrupto.

Desse modo, se o governo da vez for aquele considerado como constituído de falsos pretendentes a governar o Brasil, então o golpe fica, em tese, muito fácil: é só começar a denunciar, sem cessar, as corrupções praticadas, porque, nesse caso, sempre haverá corrupção, uma vez que, repito, corrupção é compactuar com as classes dominantes, traindo a justiça demandada pelos povos.

Decidir pela agenda das classes dominantes, quando se cai em suas armadilhas ou simplesmente quando se vende, é, sem dúvida, o caminho mais curto para ficar vulnerável a golpes. Dilma não tem o carisma de Lula, de modo que recorrer à população, de uma hora para outra, como fez Lula quando ameaçado, tem alto risco de não dar certo. É preciso ter clareza de que o falso pretendente é sempre falso pretendente, sob o ponto de vista dos supostos verdadeiros pretendentes.

Mais cedo ou mais tarde, eles serão varridos do mapa, seja pelas classes dominantes, seja pelos povos rebelados em busca de justiça, se não se assumem como falsos pretendentes, que são, quer queiram ou não queiram, pois possuem a marca de Caim na testa: a de falsos pretendentes, manchados (no sentido positivo) que estão do sangue da história dos oprimidos de todas as épocas. Sangue indelével, que nem a mais prodigiosa máquina ilusionista de esquecer, como o é a máquina global, pode, ainda que de forma dissimulada, apagar.

A única saída, a que fará jus à incrível oportunidade histórica de contribuir com a justiça para os povos, está inevitavelmente implicada com a necessidade de assumir a luta épica do falso pretendente: a de fazer valer um mundo de pretendentes comuns, sem qualquer forma de privilégio; nem verdadeiros, nem falsos.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo