‘Voltem às suas redações presumindo que alguém ali está fazendo coisas desse tipo’, aconselhou o poderoso publisher do New York Times, Arthur Sulzberger Jr., na semana passada, em uma conferência da Sociedade Americana de Editores de Jornal (ASNE, sigla em inglês). ‘Por que esperar o tipo de explosão que atingiu o New York Times e o USA Today?’, indagou a uma platéia ainda sob o impacto da demissão da editora do USA Today¸ Karen Jurgensen, que se aposentou precocemente depois que uma investigação interna atribuiu à direção do diário grande parte da culpa pelas fraudes cometidas pelo seu repórter internacional Jack Kelley, que se demitiu em janeiro.
Os editores veteranos Bill Hilliard, Bill Kovach e John Seigenthaler verificaram, num processo que durou mais de dois meses, que Kelley, 43 anos, inventou e plagiou trechos consideráveis de pelos menos oito grandes reportagens na última década. Entre as lorotas inventadas pelo repórter, que era tratado como uma estrela dentro da equipe do USA Today, estão que ele teria visto uma refugiada cubana se afogar ao tentar chegar à Flórida e que teria testemunhado como um homem-bomba palestino mandou uma pizzaria israelense pelos ares.
Os três auditores externos culparam todos os editores que supervisionaram o repórter-falsário por criarem um ambiente propício a fraudes. ‘Jack Kelley prosperou como um jornalista desonesto por 12 anos. Todo executivo que trabalhou durante os anos em que ele traiu os leitores compartilha da vergonha do USA Today‘, escreveram Hilliard, Kovach e Seigenthaler em seu relatório, que ainda não foi publicado integralmente.
Eles concluíram que na redação do diário impera a falta de comunicação, um clima de medo e um tratamento diferenciado para alguns repórteres. Kelley sempre deixou claro que era amigo pessoal dos editores do jornal. Assim, era tido como intocável pelos colegas. Mesmo quando estes levantavam dúvidas sobre a veracidade de suas reportagens, o bom relacionamento do correspondente com a chefia impedia que as denúncias de fraude fossem investigadas. ‘Vários repórteres nos disseram que achavam que a imagem de Kelley como um repórter com amigos próximos em cargos importantes fazia com que os editores se sentissem desconfortáveis ao ouvir críticas sobre ele’. O próprio USA Today [22/4/04] noticiou que o repórter teria ainda o privilégio de sistematicamente desrespeitar as regras de uso de fontes anônimas.
Quando explodiu o caso do repórter-plagiador Jayson Blair no New York Times, no meio do ano passado, a direção do USA Today recebeu uma mensagem anônima levantando dúvidas sobre o trabalho de Kelley, mas o caso não deu em nada porque, segundo Hilliard, Kovach e Seigenthaler, a investigação conduzida na época teve como mote provar a inocência do jornalista.
Demissões pouco honrosas
Como apurou Howard Kurtz, para o Washington Post [21/4], a notícia da demissão de Karen Jurgensen não foi bem aceita por alguns colegas na redação, que não a consideram a maior responsável pelas fraudes, já que ela comandava o diário somente desde 1999. Karen se destacou no cenário da imprensa americana ao ser a primeira mulher a assumir as rédeas do USA Today, o jornal mais lido dos EUA, com tiragem acima de 2 milhões de exemplares.
Não demorou para que outros envolvidos se demitissem. O editor-executivo de notícias, Hal Ritter, que cuidou mais diretamente das matérias de Kelley, anunciou sua saída do cargo, que ocupava desde 1995, dois dias depois da demissão da editora, segundo matéria do New York Times [21/4]. ‘Minha partida tornará mais fácil para meus colegas continuarem o trabalho de engrandecer o jornal’, escreveu, em mensagem ao publisher Craig Moon. O editor-executivo Brian Gallagher, que assumiu interinamente o posto de Karen, também disse que só continuará no USA Today até que seja encontrado um substituto permanente.
O perigo mora ao lado
A história de Jack Kelley, de certa forma, repete a de Jayson Blair. Os dois maiores jornais dos EUA, The New York Times e USA Today, subitamente se viram submersos em grandes crises, que derrubaram suas direções, por causa de repórteres ‘cascateiros’. Nos dois casos, fica claro que a credibilidade é o que há de mais caro a um jornal que queira ser respeitado. Outro aspecto que chama atenção é a importância da boa administração de uma equipe. Qualquer jornalista, independente do cargo que ocupe, pode pôr a tão desejada credibilidade em perigo.
Na conferência da ASNE, em que Sulzberger avisou que todos os jornais estão sujeitos a terem um falsificador dentro de suas redações, outros editores reclamaram que é difícil checar as referências de alguém que estão contratando. Os antigos patrões normalmente não falam a verdade aos novos contratantes. ‘Muitas das pessoas que inventam e plagiam são conhecidas pelos colegas como profissionais ruins’, observou John Carrol, editor do Los Angeles Times. ‘Se temos uma maçã podre em algum lugar, não só devemos tirá-la da nossa redação, como fazer com que os outros saibam a respeito’, pregou o editor do Denver Post, Greg Moore segundo matéria de Joe Strupp na Editor & Publisher [22/4/04]. A crise no Times e no USA Today, ao mesmo tempo em que abala as estruturas da imprensa, serve para inaugurar uma fase de mudanças, em que jornais, jornalistas, leitores e, principalmente, a notícia devem ser beneficiados.