O universo da edição francesa está cada vez mais controlado por (poucos) grandes grupos, transformando a paisagem editorial numa das mais concentradas do mundo. O fenômeno ocorre também na mídia escrita e está se repetindo nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde grandes grupos vão engolindo pouco a pouco os pequenos. Na França, o mercado do livro e da informação escrita está praticamente todo nas mãos de grupos que pouco têm a ver com a vida intelectual – e cujos interesses maiores ligam-se à fabricação e venda de armas.
Essa concentração da comunicação escrita nas mãos de grandes grupos é analisada pelo editor americano André Schiffrin, no excelente livro Le contrôle de la parole: l’édition sans éditeurs, suite‘ (La Fabrique Éditions). André é filho de Jacques Schiffrin, fundador da editora La Pléiade nos anos 1930, e tem uma história pessoal profundamente ligada ao mundo do livro.
Fugindo da guerra na Europa, Jacques Schiffrin exilou-se nos Estados Unidos onde fundou a editora Pantheon. Seu filho dirigiu Pantheon com um rigor intelectual exemplar até 1992, quando a Ramdom House, grupo do qual sua editora fazia parte, foi comprado pelo grupo Bertelsmann.
André Schiffrin foi demitido em nome da rentabilidade, preocupação máxima desse tipo de concentração. Com o apoio de seus autores, fundou a independente The New Press, que segundo o ex-editor francês François Maspero é uma prova de que mesmo nos Estados Unidos as leis que regem a permanente busca de aumento das taxas de lucro podem ser desafiadas.
O livro de Schiffrin tem o mérito de ser claro e conciso. Em 91 páginas o leitor encontra um resumo da paisagem francesa, mas também da americana e da inglesa. Ele conta com detalhes alguns dos episódios que mais marcaram recentemente o mundo da imprensa escrita francesa e das editora, como a venda da Vivendi Universal Publishing (Editis) a dois grandes grupos – Lagardère e Wendel –, e da Socpresse (70 jornais e revistas, dos quais o carro-chefe é o jornal Le Figaro) a Serge Dassault.
Contra o monopólio
O caso da venda de Editis é exemplar. Primeiramente, o governo francês fez tudo para não deixar que Editis (ex-Vivendi Universal Publishing) fosse vendida a estrangeiros. Era impensável para o chauvinismo francês que a editora do general Charles De Gaulle (Plon) e do principal dicionário francês (Le Robert) pudessem sair das mãos de empresários franceses.
Finalmente, o grupo Lagardère (Hachette Livre) se mostrou interessado em comprar Editis. Sem o veto de Bruxelas (sede da Comissão Européia, que controla a formação de monopólios), o grupo Lagardère, que já detinha uma parte significativa do mercado da edição francesa, teria simplesmente ficado com o monopólio dos dicionários franceses: o grupo já era proprietário da Edições Larousse e passaria a ser dono do Robert.
Para evitar que 98% dos dicionários franceses, 82% dos livros escolares, 52% dos livros de bolso – o setor mais rentável do universo das editoras – e 45% da literatura geral fosse propriedade do grupo Lagardère, que já detém 65% da distribuição de livros na França, a Comissão Européia determinou a venda partilhada de Editis.
O império deixado por Jean-Luc Lagardère a seu filho Arnaud pôde comprar 39% de Editis, cedendo 61% a outro comprador. Do conglomerado Hachette Livre fazem parte as editoras Fayard, Grasset, Calmann-Lévy, JC Lattès, Stock, Le Livre de Poche, Hatier, Hazan, Dalloz, Dunod, Larousse e Hachette Éducation.
O comprador dos 61% de Editis foi o grupo industrial Wendel, pertencente ao barão Ernest-Antoine Seillière, presidente do Medef, a associação patronal francesa. Proveniente, como Dassault e Lagardère, de um mundo absolutamente estranho à edição, Seillière tornou-se o número 2 da edição francesa ao adquirir a parte de Editis que compreendia as editoras Le Robert, Presses de la Cité, Plon, Robert Laffont, La Découverte, Pocket, 10/18, Nathan e Bordas.
Tomando posse dessas empresas, o barão Seillière, o supra-sumo da direita reacionária na França, passou a ser o editor, entre outros, de José Bové e Michael Moore. Ele disse que achava ‘divertida’ essa história de ser o dono de La Découverte, editora que sucedeu às Edições Maspero com uma linha editorial de livros contestatários de esquerda.
Na área de distribuição do livro a concentração também é uma realidade, na França como nos Estados Unidos. Em ambos os casos, somente 18% das vendas de livros são independentes. A maior parte das livrarias e distribuidores são de grandes grupos, como Hachette e Fnac na França, ou Barnes and Noble, nos EUA. O autor diz que alguns editores, como Seuil, compreenderam que é mais rentável distribuir livros dos outros do que publicar.
Liberdade de informar ameaçada
Além de mostrar o mundo da edição invadido e dominado pelo grande capital, sobrando pouco espaço para os pequenos editores independentes (como Gallimard, Albin Michel, Actes Sud, Odile Jacob e Bayard), o livro de Schiffrin também questiona como uma imprensa na qual jornais e revistas pertencem a big shots da indústria de armas (Lagardère e Dassault), dependente basicamente das encomendas do Estado, pode manter o compromisso de independência e isenção inerente à imprensa no mundo inteiro.
Dassault e Lagardère hoje controlam mais de 70% da imprensa francesa. O livro saiu antes da entrada de Édouard Rotschild no jornal Libération, o último entre os jornais franceses a receber aporte de capital de grandes grupos.
A recente entrada de Lagardère no capital do jornal Le Monde, ampliando seu poder na mídia impressa, e a compra por Serge Dassault da Socpresse, que edita entre outros 70 títulos Le Figaro e L’Express, são a prova patente da atração dos grandes grupos pela mídia na França. No caso do Le Monde, apesar do aporte de 25 milhões de euros de Lagardère (Hachette), o diário ainda é majoritariamente controlado pela sociedade Le Monde et Partenaires Associés, que representa os jornalistas e empregados do jornal e detém 46% do capital.
O grupo Lagardère detém na imprensa, entre outros, os títulos Paris Match, Le Journal du Dimanche, France Dimanche, Télé 7 Jours, Elle, Marie Claire, La Provence e Nice Matin.
No ano passado, Dassault levou para dentro da redação do Figaro uma inquietação justificada. Na França, até agora, os jornalistas faziam jornais e revistas com total independência do capitalista majoritário. Schiffrin conta que depois que Dassault insistiu em escrever e assinar um artigo no jornal recém-comprado, o coletivo dos jornalistas do Figaro (o segundo maior jornal francês depois do Monde) comunicaram que o jornal não é um pasquim qualquer no qual o proprietário pode escrever quando quiser.
Mas os problemas do dono com a redação não pararam aí. A primeira crise mais séria veio quando toda a redação se reuniu para discutir um corte na matéria que relatava o encontro de Jacques Chirac com o presidente argelino Abdelaziz Bouteflika. No encontro, houve acordo para a venda de aviões de guerra Rafale à Argélia – e este trecho foi cortado do texto da matéria.
Por meio do sindicato, os jornalistas denunciaram o corte ordenado pela alta cúpula da Dassault Aviação, fabricante do Rafale. Os editores também protestaram e se mostraram incomodados com os telefonemas de Dassault. O sindicato publicou uma declaração denunciando a existência de uma lista negra de jornalistas a serem demitidos.
Dassault conseguirá dobrar a redação do Le Figaro e mudar a cultura da casa, ciosa da independência em relação ao patrão?
Endosso dócil
Os jornalistas franceses pensam que, cedo ou tarde, os proprietários dos jornais regionais vão querer seguir a tendência americana: mandar embora as equipes locais e fornecer material editorial feito em redações centrais. Essa deverá ser a política de Dassault para dezenas de jornais regionais comprados no lote da Socpresse.
O pai de Serge Dassault, Marcel, foi grande amigo de Chirac e financiou campanhas do atual presidente no início de sua carreira política. Hoje, o filho continua a amizade. E o governo francês anunciou recentemente a compra de 59 caças Rafale, num total de 3 bilhões de euros. A imprensa de Dassault seguramente está no bolso de Jacques Chirac.
Segundo Schiffrin, nos Estados Unidos o fenômeno de concentração dos meios de comunicação nas mãos do grande capital é também uma realidade. Ele escreve:
‘Nos EUA, os perigos da concentração da mídia apareceram de forma espetacular durante a guerra do Iraque. Não somente a imprensa, o rádio e a televisão endossaram sem nenhuma reticência as afirmações de Bush, mas as grandes editoras não publicaram nenhuma análise crítica durante o período crucial dos dois primeiros anos depois do atentado ao World Trade Center’.