A lei de Lavoisier, muito respeitada nas pautas de economia, foi violada ostensivamente pelo menos duas vezes no começo do mês – e com resultados interessantes. A primeira violação foi vinculada ao discurso da presidente Dilma Rousseff na abertura do ano legislativo. O Valor foi além da cobertura padrão e desencavou detalhes sobre como limitar a expansão do gasto público, uma das poucas novidades da mensagem presidencial.
A lei foi novamente violada quando o Estado de S. Paulo saiu da pauta rotineira para contar a manobra do governo federal, no fim do ano, para liquidar pedaladas fiscais e cobrir o déficit da Previdência. O lance envolveu R$ 54 bilhões e foi possibilitado pela participação do Banco Central (BC).
A ideia de criar uma regra para controlar o aumento da despesa pública tem aparecido, de vez em quando, há vários anos, mas desta vez há um projeto em estudo no Ministério da Fazenda. A intenção, segundo o Valor, é criar um mecanismo plurianual, aplicável a partir do Orçamento do próximo ano. Seria um reforço, e até uma ampliação, das normas disciplinares criadas no ano 2000 com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Uma das novidades, se o projeto for aprovado, será a elevação automática da meta primária – receita menos despesa, sem contar os juros – em caso de recuperação econômica. Detalhe importante: se a receita efetiva for maior que a prevista, a diferença reforçará obrigatoriamente o resultado primário, servindo, portanto, para reduzir o endividamento. A prática habitual seria gastar esse dinheiro.
O projeto ainda inclui a proposta de uma banda para o superávit primário. Seria uma forma de acomodar o resultado fiscal às flutuações de receita. Mas também pode ser, segundo as primeiras críticas, uma forma de afrouxar a gestão orçamentária. O assunto é técnico e politicamente complicado, porque envolve, entre outros pontos polêmicos, a fixação de gatilhos para corte automático de despesas, quando houver risco de ultrapassagem dos limites.
A presidente ainda incluiu no discurso uma proposta de revisão regular dos programas de governo. Um balanço periódico de resultados, com uma reavaliação das políticas, seria uma forma de tornar o orçamento federal mais flexível e mais adaptável às mudanças de prioridades.
Novos desafios aos repórteres de economia
Mas essa revisão, assim como a limitação do crescimento do gasto, deve envolver mudanças legais, e até constitucionais, para eliminação de vinculações. Essa ideia foi pouco explorada nas coberturas e valerá a pena uma discussão ampla do assunto.
Os orçamentos brasileiros são engessados e os governos têm pouco espaço de manobra . Sobra uma fatia entre 10% e 15% da receita, segundo as estimativas correntes. Além disso, as verbas asseguradas pelas vinculações são independentes da qualidade dos planos, programas e projetos e a obrigatoriedade do gasto facilita a corrupção.
Tudo isso tem sido apontado pelos críticos e comprovado por fatos. A ideia apresentada pela presidente em seu discurso – e na introdução à mensagem anual dirigida ao Congresso – abre uma boa oportunidade para reportagens e discussões.
A outra violação da lei de Lavoisier, a reportagem sobre a manobra com participação do Tesouro e do BC, mostra um novo episódio da contabilidade criativa, como observou um dos autores do levantamento. Segundo a reportagem, o Tesouro usou R$ 54 bilhões originalmente destinados ao pagamento da dívida pública para liquidar pedaladas e cobrir o déficit da Previdência. Para cobrir os compromissos da dívida foram usados R$ 50 bilhões transferidos pelo BC, numa transação considerada irregular por economistas citados na reportagem.
O assunto é complicado e o material publicado apenas abriu mais uma possível discussão sobre o manejo de recursos públicos. Á coincidência das duas histórias na mesma semana é especialmente interessante, e até intrigante.
A primeira mostrou a elaboração de um projeto para disciplinar a expansão do gasto público. A segunda descreveu mais um malabarismo financeiro do governo federal, um desdobramento da contabilidade criativa amplamente usada nos últimos anos, um período de grave deterioração das finanças publicas.
Qual das duas tendências prevalecerá? A resposta dependerá de um pouco mais de jornalismo fora da rotina – e do padrão do “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
***
Rolf Kuntz é colaborador do jornal O Estado de São Paulo e professor na USP.