Na última sexta-feira, um jornalista de O Globo ligou insistentemente para a Universidade Federal Fluminense. Procurou a assessoria de comunicação da universidade. Procurou alunos em busca de depoimentos. O motivo de tanto alarde? Um e-mail, enviado pela diretora do Instituto de Letras para seus alunos, se queixando sobre a diminuição do fornecimento de papel higiênico para a sua unidade. O resultado de tanto empenho veio, enfim, a se tornar uma matéria, publicada dois dias depois, sob o título “UFF alerta alunos para a falta de papel higiênico no Instituto de Letras” .
Em nossa sociedade, cabe ao jornalismo a incumbência tornar visível, dentre uma infinidade de acontecimentos, um punhado que, por sua relevância, merece o tratamento de “notícia”. Para definir o que é notícia, os jornalistas convencionaram seguir alguns critérios fundamentais. Um deles é o da importância, isto é o impacto que um determinado evento pode ter na vida cotidiana dos leitores. Outro é o interesse: no exemplo clássico, é quando o homem morde o cachorro. Um terceiro é a dramaticidade, a capacidade de atrair empatia e provocar emoções no público. A se crer n’O Globo, uma das notícias mais importantes do dia no país foi a diminuição no estoque de papel higiênico no Instituto de Letras da UFF. Sério? O que torna um problema administrativo corriqueiro – ou antes a denúncia desse problema – algo tão relevante a ponto de se tornar notícia no jornal?
O que torna a diminuição no estoque de papel higiênico de um instituto de uma universidade pública tão relevante é a pauta oculta por detrás dela: a crise. A se crer nos veículos da grande mídia brasileira, tudo o que acontece no país emana de um problema fundamental – a crise – ou se referencia a ele. Coisas ruins ocorrem por causa da crise. Coisas boas ocorrem apesar da crise. Na grande imprensa brasileira, e n’O Globo em particular, parece imperar uma lei que diz que é somente na medida em que pode ser lido à luz do ângulo da crise que algo é digno de se tornar notícia. É este precisamente o caso da notícia divulgada por O Globo.
Não há papel higiênico suficiente
Um segundo aspecto diz respeito ao método usado pelo jornalista na produção da notícia. O ponto de partida é um e-mail escrito pela diretora de um instituto da universidade. Mas o que o e-mail descreve é verdadeiro? É significativo? Quem melhor para esclarecê-lo do que a sua autora? Não, ela não foi entrevistada… Uma segunda providência seria verificar a situação in loco. Deixar a redação e conferir se, no final das contas, existem problemas sérios que de algum modo inviabilizem o uso dos banheiros do Instituto. Algo que faça, minimamente, a notícia merecer o estatuto de notícia… Mas é claro que o jornalista não o fez. Por que o faria? A materialidade do problema aparentemente nunca esteve em pauta. Para o modelo de jornalismo acusatório que se tornou endêmico n’O Globo e em boa parte da imprensa brasileira, declarações bastam. O fato é que “fulano disse”, o que quer que isso signifique.
O terceiro ponto a se destacar são as evidências da pauta oculta que orienta a matéria – não tão oculta para quem acompanhou a produção da notícia, do ângulo da assessoria. Trata-se, pura e simplesmente, de atacar a universidade pública, como forma de ilustrar a crise, e atribuí-la ao governo federal. Qualquer coisa, por mais ínfima que seja, que possa ser usada para ilustrar o ponto, o será. Mesmo que seja a redução do estoque do papel higiênico.
Elas por elas, o caso serve para demonstrar o quanto o jornalismo da crise que, hoje, praticam algumas das mais importantes organizações noticiosas do país revela sobre a crise por que passa atualmente o jornalismo no país. Crise de valores, para começar. Crise de métodos. Crise de legitimidade. Crise de credibilidade, que desce pelo ralo, diante de práticas levianas que violam todo o senso profissional que deveria basear a atividade jornalística.
No final das contas, a matéria sobre o papel higiênico revela muito mais sobre o jornalismo do que sobre o Instituto de Letras ou a universidade ao qual ele pertence. Ela fornece uma evidência – apenas mais uma dentre tantas outras, infelizmente – de que em nosso país o jornalismo das grandes organizações chafurda no esgoto.
E não há papel higiênico o suficiente que baste para dar conta de tanta imundice.
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Afonso de Albuquerque é professor do curso de Estudos de Mídia e superintendente de Comunicação Social na Universidade Federal Fluminense