Sentada diante da porta do estúdio, a mulher esperava a hora da gravação. Encolhida contra a parede, bebericava um suco de caixinha e chorava copiosamente. Quando deu o horário, ela se levantou e entrou na sala para gravar o programa A Máscara (Niqab). Criado pelo advogado Sami Mahdi, de 28 anos, Niqab é exibido pelo canal 1TV, de Cabul, capital do Afeganistão. No platô, atrás de uma máscara azul e branca que protege suas identidades e lhes dá coragem, mulheres contam suas experiências de abuso doméstico no interior do país.
O caso da convidada aos prantos está entre os mais impactantes do repertório do americano Farrell Meisel, presidente da 1TV, que começou a transmitir de Cabul em 2010. Meisel esteve no Brasil e falou no 12º Fórum Brasil TV sobre a experiência de fazer “televisão a partir da frente de batalha”. Com objetividade e frieza, o executivo relata a experiência afegã. “Já atravessei um verão e um inverno, estou na primeira primavera no país.” Sua mulher, a cineasta Vered Kollek, dispensa a frieza e ressalta os aspectos mais duros da vida em Kabul: as faltas de energia e água, as ruas sem pavimentação, a obrigação de se manter cercado de seguranças. “Eu me adapto. Procuro não ir a lugares que possam ser perigosos”, completa Meisel, friamente.
Ele começou uma carreira internacional na televisão em 1992, quando participou da fundação da TV6 de Moscou, a primeira rede de televisão privada da Rússia após a queda da União Soviética. Naquele ano, diz, estava cansado do rumo da mídia americana. “Tudo estava ficando muito igual, o mercado não prometia nada. Pensei até em abrir uma tabacaria.”
Canais evitam polêmicas
Desde então, comandou canais na Turquia, na Polônia e em Cingapura, além da rede Al Hurra (“o livre”), canal em língua árabe financiado pelo governo americano. “O projeto russo abriu caminho para mercados emergentes que quebravam o monopólio estatal”, estima.
No Afeganistão, Meisel toca um canal idealizado por Fahim Hashimy, veterano do exército de 30 anos. O lucro é uma perspectiva distante, mas não de todo ausente. O mercado de televisão é recente no país. Teve início em 1974, mas foi banido pelo Talibã entre 1996 e 2002. Hoje, as mídias se expandem rapidamente. Criam-se, a cada ano, nove canais de televisão e 20 de rádio, segundo o relatório “Mídia Afegã em 2010”, da agência governamental americana Usaid (United States Agency for International Development). Em número de receptores, o crescimento anual é de 20%.
Enquanto o lucro não vem, a rede busca outros propósitos. A inscrição na vida política do país, ocupado por tropas estrangeiras e ameaçado pelo fundamentalismo religioso, é um triunfo. “Ele escolheu o nome Yak [“um”, em dari, vertente afegã do idioma farsi] para representar a unidade da nação. Fahim dá grande importância à unificação das tribos”, diz Meisel. Os demais canais, como o líder Tolo TV, fundado em 2007, evitam enveredar pelas polêmicas de um país com recorrentes atentados à bomba. A rede Emrooz, que exibia sem censura vídeos musicais de países vizinhos, como Tadjiquistão, Irã e Índia, foi fechada pelo Ministério da Cultura por conduta não condizente com o Islã.
Uma “forma de empoderar as mulheres”
A Yak TV exibe debates, talk shows e reportagens investigativas. Nos debates, discussões acerbas não são exceção. A Máscara tampouco é sempre bem recebido. “Mesmo entre os jovens, muitos afegãos não acreditam em igualdade. A apresentadora de um dos nossos programas foi obrigada a largar o emprego pela própria família”, diz Meisel. O desafio da 1TV, diz seu presidente, é como o de qualquer outro canal: conciliar os desejos do público, que “quer ser estimulado, entretido e informado”, com os interesses dos anunciantes. Os 65 canais do país (apenas 25 registrados) dividem US$ 30 milhões de publicidade por ano. Os anunciantes se restringem ao governo afegão, o governo americano, a Etisalat (agência de comunicação dos Emirados Árabes Unidos), organizações não-governamentais e instituições multilaterais.
Ainda assim, segundo o relatório da Usaid, são dez mil profissionais trabalhando nesse mercado. Na 1TV, são 300 empregados. Televisão e rádio são de longe o meio de comunicação com maior penetração: só 30% dos 29 milhões de afegãos sabem ler – 43% dos homens e 12% das mulheres.
Os números trazem à tona o papel social da televisão. Os debates e A Máscara são definidos por Meisel como “uma porta que se abre”. A Máscara, em particular, é uma “forma de empoderar as mulheres” e Mahdi diz que o projeto foi criado com o pensamento em sua mãe. São iniciativas para um país em que a regulamentação legal é acrescida de regras criadas ad hoc por mulás, ou seja, autoridades religiosas. “Sofremos pressões tanto do governo quanto de grupos religiosos. É normal. Não podemos impor nossas liberdades. É um processo de treinamento”, diz o executivo americano, que se dedica a entreter os afegãos e treiná-los nos valores vindos do Ocidente por meio da televisão comercial.
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[Diego Viana é jornalista]