O jornal britânico The Guardian vem publicando trechos do livro After Leveson, compilação de artigos com expectativas e questionamentos sobre a indústria jornalística britânica depois do fim do inquérito criado para avaliar os padrões da imprensa. O capítulo a seguir, traduzido pelo Observatório da Imprensa, é de autoria do jornalista Phil Harding, ex-fiscal de política editorial na BBC. Antes da publicação do Inquérito Leveson, ele conduziu uma pesquisa para o Conselho Nacional para o Treinamento de Jornalistas (NCTJ, na sigla em inglês), órgão independente que credencia cursos de jornalismo e aplica exames para profissionais. Para Harding, as conclusões da pesquisa levantam questões sérias sobre ética jornalística e a responsabilidade das organizações de mídia.
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Quase todas as pessoas que entrevistei para minha pesquisa, entre elas editores seniores e executivos da maioria dos principais grupos de mídia impressos e de radiodifusão, mostraram-se envergonhadas sobre acontecimentos passados.
Eles acreditavam que revelações haviam ferido sua própria integridade e a de sua profissão. A maioria concordou que são necessárias mudanças e que questões éticas no jornalismo devem ter prioridade.
Poucos disseram temer que o debate sobre ética pudesse levar à supressão do bom jornalismo e que pautas importantes pudessem deixar de ser publicadas.
No geral, houve um consenso de que a ética é importante, e muito. Houve uma compreensão do pacto entre o leitor e o jornalista, e o reconhecimento da realidade comercial que se seguirá se este laço de confiança for quebrado.
O treinamento no meio da carreira para jornalistas seniores é necessário
Observando o que existe atualmente em termos de bases éticas do jornalismo, há dois estágios na carreira. O primeiro é o treinamento daqueles que estão entrando no jornalismo. O início da carreira é um momento importante para a formação de seu foco profissional.
O segundo é a preparação de jornalistas no meio da carreira e jornalistas veteranos. Estas são as pessoas que desempenham um papel crucial na liderança editorial; ainda assim, há aqui uma grande lacuna.
Nos jornais, estas são as pessoas que delegam tarefas aos repórteres; entre os radiodifusores, são responsáveis pela produção diária. Mas, muitas vezes, receberam pouco ou nenhum treinamento desde que ingressaram na organização que os emprega.
Espera-se que eles tenham adquirido por osmose a liderança necessária e as habilidades administrativas e editoriais exigidas por esta nova função.
Ainda que haja, hoje, muita educação sobre regulação, há bem menos ensino sobre ética na mídia. As palavras ética e regulação frequentemente são usadas de forma intercambiável, mas é importante entender a diferença entre elas. Ética é algo muito mais amplo e profundo que regulação.
Regulação é o que você pode ou não fazer; ética é o que você deveria fazer. Pode haver uma série de circunstâncias jornalísticas onde há considerações éticas que não são cobertas pela regulação.
Bons jornalistas não precisam apenas saber o que é certo e errado, mas também entender por quê. É possível respeitar um código regulatório sem ter muita compreensão do raciocínio por trás dele.
Há um mundo de diferença entre ensinar o texto do código de prática dos editores – como é atualmente aplicado pela Comissão de Queixas da Imprensa (PCC, na sigla em inglês) – e seu sentido.
Ensinar regulação é diferente de ensinar ética
É importante que tanto o código de prática dos editores (e o que vier a ocupar seu lugar) e o código do Ofcom [órgão que regula o setor de telecomunicações] sejam partes integrantes do treinamento jornalístico. Estreantes na profissão precisam conhecê-los.
Mas ensinar regulação sem ensinar ética é um pouco como pregar os 10 mandamentos sem fornecer nenhum entendimento sobre religião.
É preciso examinar seriamente o quanto de ética é ensinado no treinamento prévio, além do básico dos códigos regulatórios. A maior parte dos cursos universitários não dá nenhuma impressão de que a ética é uma parte crucial do treinamento.
Raramente há uma seção separada sobre ética jornalística na grade curricular. O tempo é claramente um fator importante para muitas instituições de ensino. Todas reconhecem a importância da ética, mas muitas se preocupam sobre como irão encaixar algo a mais em seus já lotados cronogramas.
Todos os entrevistados concordaram que o ensino da ética jornalística precisa ser fundamentado em casos práticos reais. Um exemplo de como isso pode ser feito pode ser encontrado em alguns dos atuais módulos sobre jornalismo e sociedade e a relação entre os dois.
Inserir a ética no treinamento foi uma recomendação-chave do relatório que eu submeti ao NCTJ. Em novembro de 2012, a organização anunciou que um novo módulo sobre ética será incluído em seu diploma em jornalismo.
O novo módulo, que será chamado de “ética jornalística na prática”, terá um exame escrito de uma hora em que os estudantes serão julgados não por respostas certas ou erradas, mas por quão bem identificam as questões. Ao mesmo tempo, o módulo de legislação de imprensa será revisado para incluir uma maior ênfase em regulação.
Editores precisam de ‘reeducação’ para mudar a cultura das redações
Quando perguntei a executivos de mídia seniores sobre o treinamento de jornalistas experientes, as observações foram alarmantes:
“A lacuna [em ética] é realmente entre os editores seniores”… “Se vai haver uma mudança imediata na cultura do jornalismo neste país, então deverá haver uma reeducação dos editores”… “O jornalismo deve ser uma das únicas profissões ou ocupações onde o único momento em que você faz algum treinamento ou desenvolvimento é no começo. Depois disso espera-se que você simplesmente aprenda as coisas”.
Estas citações resumem por que eu agora penso que o treinamento no meio da carreira é crucial. Estes são os jornalistas que muitas vezes têm que tomar as mais sensíveis decisões éticas. Eles brifam os repórteres antes que estes saiam da redação; eles fiscalizam e aprovam a cópia final; e eles são as pessoas consultadas por colegas menos experientes com dilemas.
Mas a maioria terá recebido pouco ou nenhum treinamento desde que entrou no jornalismo. A maioria não terá recebido treinamento para o cargo de gerência que agora ocupa.
Nos últimos anos, a PCC assumiu um importante papel no ensino de ética no jornalismo, ainda que este não seja o papel para o qual tenha sido originalmente fundada.
A PCC enviou um instrutor a diversos cursos de jornalismo para apresentar a eles os pontos essenciais do código de prática dos editores.
A PCC também realizou seminários para atualizar organizações de notícias sobre alguns de seus julgamentos e casos recentes. Estes encontros ocorriam frequentemente nas redações, eram abertos para toda a equipe e normalmente duravam até uma hora e meia.
Quando a PCC estava a todo vapor fazendo workshops, atingia cerca de cem jornais por ano, embora esta atividade tenha caído com as incertezas sobre o futuro da regulação.
Se houver um programa de treinamento e desenvolvimento no futuro para editores e executivos seniores, o órgão regulador sucessor da PCC pode ter um papel crucial pela frente.
Quase todas as profissões requerem que seus praticantes passem por alguma forma de treinamento profissional contínuo para garantir que todos estejam atualizados com os desenvolvimentos correntes. Advogados têm que fazê-lo, assim como médicos. Até encanadores têm que receber treinamento para instalar o último modelo de boiler.
A não ser pelos ocasionais seminários da PCC, tem havido pouco treinamento para funcionários editoriais na maior parte das redações. Todos dizem estar muito ocupados para haver qualquer debate sincero sobre as várias questões éticas que podem surgir.
Por que jornalistas devem treinar jornalistas…
Esta é uma grande lacuna. A maioria das pessoas que entrevistei achava que algo deveria ser feito sobre isso. Os pontos de vista variavam sobre o que e como.
Há pelo menos duas exceções a esta falta de treinamento e desenvolvimento de profissionais experientes. Diante das revelações dos grampos telefônicos, dois grupos de mídia lançaram novas iniciativas. Um começou, no ano passado, a fazer seminários para seus editores; o outro está para lançar uma série de workshops para seus jornalistas seniores.
Todos estes cursos estão sendo conduzidos por jornalistas veteranos ou ex-jornalistas. Muitos dos entrevistados enfatizaram para mim como isso era importante para a credibilidade da mensagem passada.
Parece haver uma grande necessidade por um programa de desenvolvimento profissional contínuo no jornalismo. Isso não é uma responsabilidade que pode ser terceirizada para advogados ou para o departamento de RH.
O treinamento de ética bom, efetivo e de confiança tem que ter orientação jornalística. É importante que a ética seja vista como algo com o qual os jornalistas devem se preocupar e como um assunto que eles deveriam dominar.
Ética poderia ser parte de um pacote maior de treinamento no meio da carreira que poderia incluir atualizações jurídicas, novos desenvolvimentos em mídias sociais e tecnologia, questões regulatórias, e módulos sobre liderança e administração.
Não será fácil. Este é um novo território para o jornalismo. Diversas pessoas ressaltaram para mim que a mudança tem que começar de cima. Se os conselhos de diversas organizações de mídia e os editores-chefes não levarem isso a sério, ninguém levará.
Se o jornalismo quiser reconquistar sua credibilidade e a confiança do público é essencial que leve a ética muito a sério.