A edição de 24 de fevereiro da revista britânica The Economist traz longa análise da recente e maciça "invasão" do mundo árabe pelos canais de TV por satélite. Apurada em capitais como o Cairo, no Egito, ou Riad, na Arábia Saudita, na vila marroquina de Laayoune ou no pequeno Emirado do Catar, a matéria diz, na linha-fina sob o título, que com 150 canais para escolher os árabes estão discutindo, comparando e perguntando como nunca. "Poderá esta explosão de liberdade de expressão trazer mais democracia?", pergunta a revista.
A empoeirada Laayoune, por exemplo, está na extremidade ocidental do deserto do Saara. Há pouco tempo, suas ligações com o Leste árabe eram o rádio de ondas curtas, jornais velhos, um filme egípcio ocasional ou as conversas com peregrinos de passagem. Mas agora o clamor de lugares como Beirute e Bagdá está na porta da aldeia. Na verdade, na sala de estar, e 24 horas por dia.
O impacto do satélite foi profundo. Não apenas quebrou o isolamento de Laayoune e incontáveis outras cidades e vilas (o que estradas e telefones até poderiam fazer, lembra o redator), nem somente expôs a população a extremos de comportamento, como a pornografia ou o fervor fundamentalista (tarefa que a internet talvez pudesse cumprir). A TV via satélite está criando na verdade um senso de "pertencimento", de participação, uma espécie de metrópole árabe virtual que, na opinião da revista, está tornando realidade um sonho que 50 anos de discursos e gestos políticos não conseguiram: a unidade árabe. (A revista bem que poderia lembrar o longo domínio britânico sobre grande parte da região, desencorajando uniões, mas deixemos este detalhe de lado).
O sagrado ao vivo
Para The Economist, embora uma realidade distante, já que os laços que ligam os árabes são ainda "sentimentos e lembranças", além da fé muçulmana amplamente compartilhada e a língua árabe, todas essas coisas em comum vêm sendo fortalecidas pela TV via satélite. Começando pelo árabe, uma língua diversa e rica. Os nativos de Laayoune falam seu dialeto local, mas agora ouvem de tudo, do discurso clássico da literatura a seus muitos derivados regionais, e não se espantam mais com a diferença. O árabe moderno, ensinado nas escolas e esquecido no dia-a-dia, agora é uma língua viva não para os educados, mas para todos.
No caso da religião, os árabes podem buscar orientação diretamente em Meca, em vez da mesquita vizinha: há dois canais sauditas dedicados ao reino da fé. Os telespectadores cansados de xeques barbudos têm à disposição pastores eletrônicos como o conservador Amr Khaled, do Egito. Isso tudo acelerou a homogeneização da prática religiosa muçulmana. Em janeiro, por exemplo, autoridades religiosas sauditas anunciaram um dia antes do esperado o início do mês lunar muçulmano de Dhu’l Hijja. Durante quatro dias os peregrinos promovem rituais sagrados em Meca, enquanto os demais muçulmanos festejam o feriado de Eid.
No passado, conta a revista, os demais governos ignorariam o anúncio saudita, mas agora a transmissão é ao vivo. Apesar da confusão geral, que obrigou milhões de pessoas a mudar os planos para o Eid, cada país muçulmano, exceto a Indonésia, sente-se obrigado a seguir o calendário de Riad. Afinal, todo mundo veria os sauditas rezando, ao vivo, pela TV.
Gente "como nós"
Questões locais ainda inflamam paixões em Laayoune, mas agora também as dos distantes iraquianos e palestinos. Atualmente, quando alguém quer chamar atenção para seus problemas, o fórum preferido não é a imprensa local, mas a dos distantes Catar e Dubai, lar dos dois canais de notícias mais populares, al-Jazira e al-Arabiya. Al-Jazira, de longe a mais conhecida, tem 50 milhões de telespectadores. O canal comercial de entretenimento MBC tem mais ainda. Mas quando sua pequena rival, Future TV, sediada em Beirute, promoveu concurso musical no verão passado, 15 milhões de telespectadores votaram – número que as eleições políticas jamais registraram.
O vencedor do concurso, um estudante de Odontologia da Líbia, tornou-se mesmo que brevemente o líbio mais famoso do mundo depois do coronel Muamar Cadafi. Uma década atrás, governantes como Cadafi tinham audiência cativa, e seus críticos só encontravam espaço no Serviço Árabe da BBC, na Rádio Monte Carlo, do governo francês, ou nas transmissões de propaganda dos regimes vizinhos hostis.
Quase todos os Estados árabes têm monopólio de radiodifusão, menos Iraque e Líbano. Mas eles estão às moscas. Por isso, muitos ministérios da informação vêm lançando seus próprios canais a cabo. O enorme sistema de mídia do governo egípcio, por exemplo, tem 25 canais. Mas a concorrência do satélite persuadiu também esses radiodifusores estatais a oferecer mais informação, mais reportagem e cobertura menos adulatória dos líderes.
Nada parece conter, entretanto, o impacto do poder de escolha. Uma coisa é ver culturas e estilos de vida diferentes nos filmes de Hollywood; outra é ver isso na porta ao lado. A revista exemplifica com mulheres e eleições. As sauditas vêem mulheres dirigindo carros (o que para elas é proibido) não só na América "decadente", mas ali perto, no Kuait ou em Dubai; sírios e egípcios acompanham "eleições reais" não apenas na rica Europa cristã, mas nos vizinhos Palestina e Iraque. Essas inovações não são mais para gente "como eles", mas para gente "como nós".
Tabu quebrado
O que causa uma certa inquietação por lá é que essas imagens não são apresentadas inadvertidamente. Os programas mais populares da TV árabe por satélite são os que abertamente estimulam o apetite da mudança. Al-Jazira é pioneira e líder nesse tipo de programação. Sediada no Catar, fundada graças à generosidade de seu liberal emir, começou a transmitir em 1996. Teve a sorte de poder contratar pessoal treinado em Londres, egresso de um projeto fracassado da BBC, que tentara entrar no mercado árabe de satélite. Como é do conhecimento do leitor deste Observatório, arrebentou, com seu jeito novo de fazer TV, em contraste com as emissoras estatais rigidamente controladas. Mostrava opiniões diferentes, freqüentemente conflitantes, mesmo no contexto pan-arábico. Cavoucou fatos enterrados no passado árabe, reportou de todo o globo.
Segundo The Economist, para o público árabe tornou-se particularmente atraente um programa de debates de 90 minutos chamado Rumos opostos, confrontando dois convidados adversários, com participação do público. Um dos típicos temas recentes: "Por que quando um líder árabe morre o povo chora como se a nação não pudesse viver sem ele? O que esses líderes nos legaram? Não seriam eles símbolo de corrupção, atraso e tirania?"
A divulgação desse discurso teve um efeito catártico não apenas na audiência árabe, mas na profissão de jornalista. "Antes de nós a mídia árabe era controlada por aparatos políticos e de segurança, que ditavam o que veicular", diz Jihad Ballout, porta-voz do canal. "Al-Jazira transgrediu isso tudo. De repente, o povo teve acesso a toda a informação proibida por 40 anos, o que forçou os regimes a permitir maior de liberdade." `
Sua visão é amplamente compartilhada. Claro, virou alvo de ataques. Quando quebrou um tabu árabe e entrevistou funcionários israelenses, alguns disseram que o canal é uma conspiração sionista, entre outras acusações. Governos restringiram os movimentos de seus repórteres e advertiram seus anunciantes.
Voz encurralada
Mas sua popularidade só fez aumentar. O primeiro boom foi na intifada palestina de 2000. As sangrentas imagens ao vivo pregaram os árabes diante da TV, criando uma onda regional de simpatia em torno dos palestinos. Um ano depois, a decisão de abrir sucursal em Cabul, que para The Economist foi "sorte", propiciou à Jazira uma janela exclusiva para mostrar os ataques que deram início à guerra dos americanos ao terror. Árabes e muçulmanos, seus repórteres tiveram acesso privilegiado ao front afegão. O canal acabou escolhido por Osama bin Laden para vitrine de sua pregação aos árabes.
No Iraque ocupado, dava espaço idêntico aos dois lados do conflito. Os americanos, que um dia elogiaram sua objetividade – já foi chamada de "farol na escuridão" pela Casa Branca – agora a acusam de "porta-voz do inimigo". A tendenciosidade da Jazira, diz The Economist, estaria não na cobertura "altamente profissional" de seus repórteres, mas na edição das matérias, nas perguntas forçadas dos entrevistadores, na escolha do som e das imagens para os dramáticos spots que exibe entre os programas. "Mas isso também se pode dizer de muitas redes americanas", ressalva a revista.
Quando os americanos ("acidentalmente ou não?", pergunta The Economist) bombardearam o escritório em Cabul da Jazira e mais tarde o de Bagdá, muitos árabes supuseram tratar-se de manifestação direta da ira americana. A expulsão da Jazira pelo governo provisório do Iraque e a prisão na Espanha de um repórter importante do canal, como suspeito de ajudar terroristas, somente acrescentaram mística ao canal. "Al-Jazira passou a se considerar perseguida, a voz encurralada da verdade", diz a revista.
Efeito moderador
A sisuda The Economist encontra nesta auto-imagem da Jazira um inconveniente que contamina o estilo do canal de reportar – apesar da expressão "altamente profissional" dois parágrafos atrás. "Sua cobertura do Iraque tem sido freqüentemente emocional, e refletido uma tendência em favor dos sunitas, nacionalistas árabes que vêem a resistência armada à ocupação como nobre e legítima", opina o redator. Mas recua: "De qualquer modo, o declínio da imagem americana entre os árabes é culpa não da Jazira, mas das políticas impopulares dos americanos e de sua inabilidade para atrair-lhes apoio".
A revista até cita declaração do ano passado de um porta-voz militar da invasão, o capitão Josh Rushing, que acha que seus superiores deveriam ter usado a Jazira para chegar aos árabes. "O governo americano não tem até agora um porta-voz treinado diante das câmeras que seja capaz de falar um bom árabe", estranha a revista.
Shibley Telhami, da Brookings Institution, de Washington, fez pesquisa e encontrou pequena diferença de opinião sobre os Estados Unidos, e de resto sobre outros temas, entre os árabes que assistem e os que não assistem à Jazira. Na verdade, em alguns países, os árabes que assinam a CNN são até mais antiamericanos do que os que vêem a Jazira. Os árabes têm opiniões "muito radicais para os ocidentais", julga a revista. Por exemplo: Telhami descobriu que os jordanianos preferiam al-Jazira até 2003, pela cobertura da intifada palestina (muitos jordanianos são palestinos). Mas, quando a emissora dedicou-se mais ao Iraque, mudaram de canal, para a "bombástica al-Manar", o canal por satélite da "milícia radical xiita Hizbolá", do Líbano (o canal que os americanos chamam de "terrorista").
"Na verdade, al-Jazira tem freqüentemente exercido um efeito moderador", concede The Economist, citando em contraste pregadores eletrônicos que classificam democracia e liberdade como "conceitos infiéis". O canal, informa, não veicula os vídeos dos seqüestradores iraquianos, embora uma pesquisa informal tenha provocado choque: 80% dos votantes consideram legítima a execução de reféns.
Favores de Bush
Mas um teste prático do que realmente pensa o público árabe está em andamento. Pela primeira vez, al-Jazira tem uma rival séria. Não é al-Hurra, o canal do governo americano gerado do Washington, que lutou, e falhou feio, para provar que é objetivo. É al-Arabiya, canal de notícias 24 horas de dono saudita baseada em Dubai.
Em seu lançamento, no início de 2003, al-Arabiya parecia a Jazira, mas melhor. Não é de estranhar, já que a Jazira estabeleceu os padrões e a Arabiya contratou na calada alguns de seus melhores profissionais. Na cobertura do Iraque, ganhou audiência instantânea. No ano passado, porém, seu dono, que "por acaso" é cunhado do rei Fahd, da Arábia Saudita (aliado, mesmo que às vezes relutante, dos EUA), colocou no comando um editor claramente pró-Estados Unidos. Desde então, os dois canais brigam.
Em novembro passado, o telespectador que assistisse às cenas da ofensiva em Faluja dos fuzileiros americanos pensaria que os dois canais cobriam acontecimentos diferentes. Enquanto a Jazira mostrava as mortes de civis e a resistência heróica, a Arabiya exibia a "tempestade no céu dos terroristas", comenta The Economist. Antes da eleição iraquiana, a Arabiya saturou o público com propaganda em prol do voto, além de uma entrevista em quatro partes com o primeiro-ministro provisório, Iyad Allawi. Os funcionários americanos esnobavam a Jazira, mas George W. Bush deu duas exclusivas a sua representante árabe.
Breve floração
O editor-chefe de al-Arabiya, Abdul Rahman al-Rashed, não refresca. "Atraímos os liberais", diz. "Al-Jazira atrai fanáticos". Da Jazira, a resposta: "Eles estão perdendo credibilidade rapidamente", diz o editor palestino Ahmed al-Sheikh. "Al-Arabiya pode ser mais popular com os governos e conseguir mais acesso, mas nós não podemos ceder, temos que manter nossos princípios."
Em alguns mercados, a Jazira mantém a ponta. No Cairo, mostrou pesquisa recente, a Jazira tem 88% da audiência, contra 35% da rival. Mas os iraquianos vêem mais a Arabiya do que a Jazira, e na Arábia Saudita as duas estão emparelhadas. Enquanto a Arabiya é bem-vinda em toda parte, a Jazira foi expulsa do Iraque, do Kuait, do Barein e da Arábia Saudita. O canal foi proibido até de cobrir o haj, a peregrinação a Meca.
Para completar, al-Arabiya tem dinheiro. Pertencem à holding o MBC e o Canal 2, os mais lucrativos canais comerciais. E vem conseguindo anunciantes: no ano passado, foram 10 milhões de dólares, que ajudaram a cobrir os custos anuais, de 75 milhões.
Al-Jazira, com gastos semelhantes, não tem anúncios, a não ser de algumas estatais do Catar – apesar do prejuízo, o pequeno emirado ganha reconhecimento, além da fama de tolerante. Mas recentemente foi anunciada a privatização do canal. Se for verdade, o comprador será com certeza pressionado a um acordo com os sauditas que, por meio de prepostos e tratados, detêm praticamente o monopólio do satélite árabe. Em outras palavras, alerta The Economist, os árabes podem em breve estar olhando para a era al-Jazira como uma breve floração do jornalismo crítico e independente.