Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Agência Carta Maior

VEJA
Marcelo da Silva Duarte

Em seu devido lugar, 25/11

‘Para o jornalismo da revista Veja, aparentemente, 4000 assassinatos e milhares de sessões de tortura talvez justifiquem a punição de seus responsáveis, mas 400 mortes e poucas centenas de sessões de sadismo, não.

Ao menos duas falácias históricas e uma analogia bizarra falseiam a compreensão da idéia de revisão do princípio da Lei da Anistia apresentada por ‘Questão fora de lugar – A idéia de revisar o princípio da Lei da Anistia revela a falta de foco do ministro da Justiça’, reportagem de Diogo Schelp para a revista Veja (12/11/2008).

‘Quinze anos depois da instauração do regime militar no Brasil’, afirma Schelp, ‘generais e opositores chegaram a um acordo que permitiria iniciar o processo de abertura política, sem maiores solavancos’. Tal acordo ‘foi a Lei da Anistia, assinada em 1979’. Para que tal entendimento fosse amplo, geral e irrestrito, continua Schelp, ‘e não parcial, como queria boa parte da caserna -, reuniram-se políticos, estudantes e trabalhadores naquele que foi o primeiro movimento coordenado da sociedade civil depois do golpe de 1964. Graças à anistia, conquista intensamente festejada por todos os democratas, puderam voltar ao país ou sair da clandestinidade José Serra, Fernando Gabeira, Leonel Brizola, José Dirceu e Franklin Martins, entre outros exilados ilustres e nem tanto’.

Embora, de fato, o movimento pela anistia representasse o grosso das entidades envolvidas na luta pela cidadania, Schelp parece considerar uma questão menor o fato de que o projeto encaminhado pelos militares ao Congresso, em junho de 1979, atendia apenas parte do apelo das entidades abrigadas sob o Comitê Brasileiro pela Anistia, uma vez que desavergonhadamente (i) favorecia os militares, incluindo aqueles responsáveis pelas práticas de tortura, e (ii) de sua amplitude excluía os condenados por ‘terrorismo’. Não foi, inclusive, sem muita mobilização popular no dia da votação da referida lei, em Brasília, que a anistia foi estendida aos civis. A aparente harmonia entre os interesses das partes em negociação sugerida pela reportagem, portanto, parece jamais ter existido, já que a vontade dos militares era anistiar unicamente os torturadores e manter em porões os torturados, considerados como ‘terroristas’.

A pacificação interna da qual se ufana Schelp foi, na verdade, o melhor que poderia ser obtido pela sociedade diante das circunstâncias, a saber, diante de uma ditadura, por definição um regime totalitário onde não há espaço para negociação exatamente porque há imposição. Se Schelp não tem claro tal conceito é um problema dele, mas daí não se segue que a menos pior dentre determinadas alternativas faça justiça com a história.

Principalmente com a história de quem não esteve presente no ato de pacificação que a reportagem incensa. Entre os ‘generais e opositores’ -’políticos, estudantes e trabalhadores’ – que chegaram a um acordo não estavam os assassinados pela democrática ditadura de Schelp. Talvez eles também quisessem ser ouvidos a respeito de como se sentiram minutos antes de serem mortos, logo após algumas semanas de tortura. E embora essa também pareça uma questão menor aos olhos da reportagem, uma vez que mortos não falam, seria interessante saber se todos os assassinados e torturados pela ditadura militar brasileira concordariam que o princípio da Lei da Anistia é irrevisável em função de ter sido o fruto harmônico de uma democrática discussão.

O que Schelp parece ignorar é que aquilo que toma como princípio da Lei da Anistia, ‘a saber: o perdão a todos os cidadãos acusados de cometer crimes políticos’, ou seja, sua amplitude, é uma falácia que – harmonicamente, ao menos em sua visão – subsume duas verdades históricas irreconciliáveis. Só faríamos justiça com nossa memória se exclusivamente fosse considerado crime político todo aquele ato praticado contra o aviltamento da democracia patrocinado pela caserna, e jamais aqueles praticados contra esse justo e legítimo direito de sublevação cidadã pelo Exército, o único criminoso durante a recente ditadura militar brasileira. O direito ao exercício da repressão oficial, obtido injusta e ilegitimamente pelos militares a partir do golpe antidemocrático de 1964, exercido a todo vapor contra um legítimo e justo direito à sublevação, portanto, jamais poderia ser considerado crime político ou conexo a crime político, uma vez que praticado ao arrrepio da ordem democrática vilipendiada pelos próprios militares.

‘Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz – disse Jean Jacques Rousseau em seu ‘Do Contrato Social’ – age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retomâ-la ou não o tinham de subtraí-la’.

Em seu socorro, Schelp parece avalizar tese recentemente abraçada por Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual ‘embora tortura e terrorismo sejam imprescritíveis, nada impede que tais práticas sejam anistiadas’, que de modo logicamente estabanado distribui um mesmo sentido de imprescritibilidade entre fatos históricos contrários do ponto de vista contextual. Não contava, porém, com um tiro no pé: se da imprescritibilidade dos crimes de tortura e terrorismo não se segue que não sejam anistiáveis, então da amplitude principiológica da Lei da Anistia não se segue sua irrevisibilidade. Nada impede, por conseguinte, que o princípio da Lei da Anistia seja revisado, embora amplo, geral e irrestrito.

Schelp também sofisma ao afirmar que ‘os terroristas de esquerda que mataram, roubaram, seqüestraram e mutilaram (…) lutavam pela implantação de uma ditadura comunista’. Donde, por conseguinte, a legitimidade da repressão oficial e a impossibilidade de inocentá-los sem, simultaneamente, inocentar seus torturadores. Entretanto, do fato da uma das estratégias da resistência armada ter priorizado o foco revolucionário não se segue que toda resistência lutava pela implementação do embrião comunista. A tortura contra a resistência, porém, longe de qualquer sofisticação lógico-semântica, de sua parte correu ampla, geral e irrestrita.

Todavia, se ele também acredita que as reformas de base propostas pelo governo João Goulart culminariam com a implantação de um regime totalitário comunista no Brasil e que Leonel Brizola recebeu dinheiro de Cuba para financiar a luta armada contra a ditadura, então sim, a resistência cidadã lutava pela implementação de uma ditadura comunista. Porém, se Schelp não aprendeu história em colégios militares, então ao menos deveria saber que a resistência cidadã não lutava pela implementação de uma ditadura, mas sim pela democracia e pela liberdade exatamente contra uma ditadura.

Graças a essa luta é que hoje Schelp pode dar sua opinião sobre sua própria história e a falta de foco do ministro da Justiça, porém sem correr o risco de ser torturado por isso.

Schelp finaliza afirmando que ‘Argentina e Chile optaram por revogar suas leis de anistia e deram andamento à punição de alguns dos responsáveis pelos crimes de suas ditaduras’, mas ressalva que o acerto de contas de argentinos e chilenos com seus torturadores e assassinos se trata de ‘situações distintas da do Brasil, onde a magnitude da repressão foi bastante inferior’.

Ou seja, o direito de punir responsáveis por crimes cometidos por ditaduras parece ser diretamente proporcional à magnitude da repressão que os autorizou a torturar e assassinar seus semelhantes. Quanto maior a repressão, maior o direito de puni-los; porém, se a repressão não foi assim tão ampla, então esse direito parece sequer fazer sentido. Ora, isso parece implicar, na escala moral de Schelp, que punir tanto a morte quanto a tortura é eticamente irrelevante todas as vezes que a magnitude de uma repressão for inferior a um determinado padrão opressor. Resta sabermos, porém, quem o estabelece e de que forma funciona. Para o jornalismo da revista Veja, aparentemente, 4000 assassinatos e milhares de sessões de tortura talvez justifiquem a punição de seus responsáveis, mas 400 mortes e poucas centenas de sessões de sadismo, não.

Foco parece não faltar ao repórter da Veja. Mas Diogo Schelp, infelizmente, é um homem sem memória.

* Mestrando em filosofia. Mantém o blog www.laviejabruja.blogspot.com’

 

 

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