DEBATE ABERTO
Conferência Nacional de Comunicação, antes tarde do que nunca
‘No Brasil, comunicação sempre foi um não-assunto. Contam-se nos dedos os jornais que, em algum momento, abriram espaço para uma reflexão crítica a respeito do próprio trabalho. Para o rádio e a televisão dispensam-se os dedos, não há autocrítica. Se do conteúdo informativo pouco ou nada se fala, sobre as lutas de seus trabalhadores o silêncio é total. Lembro uma campanha salarial liderada pelo Sindicato dos Jornalistas do Paraná que espalhou outdoors por Curitiba com a frase ‘a nossa dor não sai nos jornais’. Naquela época, anos 1980, as dores de outras categorias até apareciam em algumas páginas, menos a dos jornalistas.
E os jornalistas, além das suas dores e angústias profissionais, têm muito a falar sobre a sociedade e os meios de comunicação. Muito mais do que seus patrões permitem. Claro que há jornalistas e jornalistas, como lembrou em artigo exemplar nesta página Marcelo Salles. São, de um lado, os que estão comprometidos com as imprescindíveis e necessárias transformações sociais e, de outro, os ventríloquos dos que lhes pagam altos salários no fim do mês. A maioria ganha pouco, trabalha muito e tem que ficar quietinha cumprindo as pautas determinadas pelos interesses empresariais.
Essa divisão se já era bem nítida, agora escancarou-se diante da anunciada realização da Conferência Nacional de Comunicação, reivindicação histórica de vários setores da sociedade. Bastou o governo confirmar o evento, a campanha contra começou. E a ordem veio de cima, bem de cima: da associação internacional dos donos da mídia no continente, conhecida pela sigla SIP (Sociedade Interamericana de Prensa). A entidade se diz preocupada ‘porque os debates (na Conferência) serão conduzidos por ONGs e movimentos sociais que pretendem interferir no funcionamento da imprensa’. Expressão que pode ser traduzida pelo temor diante da possibilidade de um debate mais sério e aprofundado sobre o pensamento único imposto pelos grandes meios de comunicação aos nossos países. Afinal, debates como o proposto podem conduzir a ações práticas, capazes de impor limites a esse poder incontrolado.
Do lado patronal dificilmente sairia posição diferente, afinal estão defendendo interesses de classe seculares. O triste é constatar que enquanto centenas de trabalhadores da mídia mobilizam-se em todo o Brasil a favor da realização da Conferência, uns poucos jornalistas e radialistas, agem em sentido contrário. Caso emblemático é o de um âncora e de uma repórter da rádio CBN que usaram longos minutos da programação para ecoar pelo país as posições dos seus patrões. Usavam o velho procedimento dos comunicadores populares, decodificando para grandes audiências as concepções ideológicas de quem lhes paga os salários. Esbanjando informalidade, usando a ridicularização como arma, eles levam ao ouvinte as mesmas idéias que os jornais apresentam de forma mais elaborada, nos editoriais ou nas colunas dos seus articulistas. Colaboram, dessa forma, para popularizar as idéias da classe dominante tornando-as dominantes em toda a sociedade, como já notava aquele pensador do século 19, cada vez mais atual.
Mas há resistência. Rapidamente os sindicatos dos jornalistas do Distrito Federal e do Estado do Rio de Janeiro foram a público repudiar a posição da SIP e dos seus porta vozes nacionais. Os jornalistas do DF através de sua entidade perguntam ‘O que pretendem os grandes empresários da comunicação? Pressionar o governo para retirar o apoio à Conferência, facilitando assim a manutenção intacta dos oligopólios que dominam, e que manipulam a informação, em detrimento do interesse público’. E os fluminenses afirmam: ‘A nossa entidade não pode silenciar diante do posicionamento pouco democrático manifestado pela SIP. É preciso deixar bem claro que o patronato mente quando diz que defende a liberdade de imprensa, pois está, isto sim, defendendo de fato a liberdade de empresa, que não aceita a ampliação dos espaços midiáticos a serem ocupados pelos mais amplos setores representativos do povo brasileiro, como são os movimentos sociais’.
Apesar das pressões, não há dúvida que a Conferência vai sair. Pelos estados já se realizam conferências regionais preparatórias para o encontro nacional marcado para o começo de dezembro, em Brasília. Diante do fato irreversível, as entidades patronais tentam impor suas pautas ao debate. Segundo a Folha de S.Paulo, para Paulo Tonet, da Associação Nacional de Jornais, discutir monopólio e propriedade cruzada é um retrocesso. Para ele o tema tem que ser ‘conteúdo nacional e igualdade de tratamento regulatório’. Mais uma frase que precisa tradução: ele quer dizer que a Conferência só deve tratar dos interesses das empresas de rádio e televisão, preocupadíssimas com a entrada no mercado de radiodifusão das operadoras de telecomunicações.
E parte para o sofisma ao chamar de retrocesso a discussão em torno do monopólio e da propriedade cruzada dos meios de comunicação, sem dúvida a maior chaga existente na comunicação social brasileira. Não há como democratizá-la sem que se enfrente com determinação esse obstáculo.
O tema geral da Conferência será ‘Comunicação: Direito e Cidadania na Era Digital’. Amplo o suficiente para caber tudo. Daí a importância da mobilização nacional, necessária para impedir que os interesses empresarias da mídia se sobreponham aos da sociedade. Conferências de outros setores, como saúde, educação e direitos humanos, por exemplo, tem sido decisivas para o encaminhamento das respectivas políticas públicas. A da comunicação não pode fugir à regra.
Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de ‘A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão’ (Summus Editorial).’
CENSURA
Gilson Caroni Filho
Mendes e a serpente
‘Quando o ministro Gilmar Mendes se apresenta, sem que ninguém tenha lhe delegado tal função, como artífice de ‘um novo pacto republicano’, estamos diante do quê? De um magistrado para quem o texto normativo é apenas uma moldura suscetível a várias interpretações ou de um ativista que põe em risco a própria noção de Estado Democrático de Direito?
Quando, com total apoio da grande imprensa, Mendes ignora a individualidade harmônica dos Poderes e constrange o Legislativo, mandando tirar da página da TV Câmara um programa que contraria seus interesses, qual a hierarquia de princípios que ilumina suas disposições pessoais? A idéia de uma justiça que se exerce em nome de toda a nação ou o arcabouço legal que privilegia grupos e estamentos particulares? Ao atacar frontalmente movimentos sociais como o MST, o presidente do Supremo Tribunal Federal age como magistrado ou preposto de velhas pretensões oligárquicas?
Sabemos que as classes dominantes brasileiras gostam de falar uma linguagem liberal enquanto exercem formas autoritárias de governo. Se há de fato uma ação orquestrada desestabilizadora, sua novidade estaria no novo arranjo do poder, com a crescente primazia do judiciário tentando anular o poder Legislativo e Executivo. Repete-se a história de sempre: os ideais liberais de alguns setores sucumbem aos velhos artifícios dos segmentos reacionários.
A ‘intempestividade’ do ministro tem raízes em antagonismos que nascem do jogo das forças sociais que repõem o jogo dialético da história. É preciso calar os novos personagens oriundos do movimento popular. Negar reivindicações e lutas de sujeitos até então destituídos de direitos: camponeses, índios e trabalhadores que protestam contra as suas condições de trabalho e vida no âmbito de uma sociedade desde sempre patrimonialista.
Nessa dinâmica o STF, com indiscutível caráter classista, age como importante ator político para a manutenção do status quo, em aliança com forças políticas que se movem com vistas à 2010. Não se trata apenas de atingir o presidente Lula, mas de resgatar a agenda que realiza o desenvolvimento capitalista sem realizar a democracia.
Ainda em fase de articulação, o movimento conta com uma base militante: a parcela da classe média que, na perfeita definição do saudoso Milton Santos,’ é mais apegada ao consumo que à cidadania, sócia despreocupada do antigo poder com o qual se confundia’
Assim, o que mobiliza a oposição ao atual governo pode ser descrito de forma simples: não deixar que se conclua a implantação de uma democracia que não seja apenas eleitoral, mas também econômica, política e social. O ativismo exacerbado guarda sintonia com o senso de urgência.
Ao cobrar agilidade do Ministério Público na investigação de repasses de recursos públicos para o MST, Gilmar Mendes não poderia ser mais explícito: ‘É bom que haja então uma atuação do Ministério Público, fazendo essa distinção, dizendo quando o repasse é legítimo. Ele vai nos ensinar em relação a isso. Mas é preciso haver decisão. Porque do contrário, por exemplo, nós estamos já há dois anos do final do governo Lula, essas investigações vão ser feitas para o próximo governo?’
Uma faxina prévia para um eventual governo Serra ou aflição da serpente com a resistência da casca do ovo? É preciso responder à pergunta que se insinua como retrocesso possível.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.’
Carta Maior
Gilmar Mendes censurou programa da TV Câmara, denuncia jornalista
‘Jornalista da revista Carta Capital denuncia que programa da TV Câmara que tratava das supostas revelações contidas no computador apreendido pela Polícia Federal na casa do delegado Protógenes Queiroz, referentes à Operação Satiagraha, foi retirado da página da TV a pedido do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Leandro Fortes escreveu carta dirigida a jornalistas brasileiros relatando o caso e protestando contra a censura.
O jornalista Leandro Fortes, da revista Carta Capital, escreveu uma carta aberta aos jornalistas brasileiros denunciando a prática de censura por parte do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Segue a íntegra da carta e um dos trechos do programa mencionado por Leandro Fortes, disponível no Youtube:
‘No dia 11 de março de 2009, fui convidado pelo jornalista Paulo José Cunha, da TV Câmara, para participar do programa intitulado Comitê de Imprensa, um espaço reconhecidamente plural de discussão da imprensa dentro do Congresso Nacional. A meu lado estava, também convidado, o jornalista Jailton de Carvalho, da sucursal de Brasília de O Globo. O tema do programa, naquele dia, era a reportagem da revista Veja, do fim de semana anterior, com as supostas e ‘aterradoras’ revelações contidas no notebook apreendido pela Polícia Federal na casa do delegado Protógenes Queiroz, referentes à Operação Satiagraha.
Eu, assim como Jailton, já havia participado outras vezes do Comitê de Imprensa, sempre a convite, para tratar de assuntos os mais diversos relativos ao comportamento e à rotina da imprensa em Brasília. Vale dizer que Jailton e eu somos repórteres veteranos na cobertura de assuntos de Polícia Federal, em todo o país. Razão pela qual, inclusive, o jornalista Paulo José Cunha nos convidou a participar do programa.
Nesta carta, contudo, falo somente por mim.
Durante a gravação, aliás, em ambiente muito bem humorado e de absoluta liberdade de expressão, como cabe a um encontro entre velhos amigos jornalistas, discutimos abertamente questões relativas à Operação Satiagraha, à CPI das Escutas Telefônicas Ilegais, às ações contra Protógenes Queiroz e, é claro, ao grampo telefônico – de áudio nunca revelado – envolvendo o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás. Em particular, discordei da tese de contaminação da Satiagraha por conta da participação de agentes da Abin e citei o fato de estar sendo processado por Gilmar Mendes por ter denunciado, nas páginas da revista Carta Capital, os muitos negócios nebulosos que envolvem o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), de propriedade do ministro, farto de contratos sem licitação firmados com órgãos públicos e construído com recursos do Banco do Brasil sobre um terreno comprado ao governo do Distrito Federal, à época do governador Joaquim Roriz, com 80% de desconto.
Terminada a gravação, o programa foi colocado no ar, dentro de uma grade de programação pré-agendada, ao mesmo tempo em que foi disponibilizado na internet, na página eletrônica da TV Câmara. Lá, qualquer cidadão pode acessar e ver os debates, como cabe a um serviço público e democrático ligado ao Parlamento brasileiro. O debate daquele dia, realmente, rendeu audiência, tanto que acabou sendo reproduzido em muitos sites da blogosfera.
Qual foi minha surpresa ao ser informado por alguns colegas, na quarta-feira passada, dia 18 de março, exatamente quando completei 43 anos (23 dos quais dedicados ao jornalismo), que o link para o programa havia sido retirado da internet, sem que me fosse dada nenhuma explicação. Aliás, nem a mim, nem aos contribuintes e cidadãos brasileiros. Apurar o evento, contudo, não foi muito difícil: irritado com o teor do programa, o ministro Gilmar Mendes telefonou ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, do PMDB de São Paulo, e pediu a retirada do conteúdo da página da internet e a suspensão da veiculação na grade da TV Câmara. O pedido de Mendes foi prontamente atendido.
Sem levar em conta o ridículo da situação (o programa já havia sido veiculado seis vezes pela TV Câmara, além de visto e baixado por milhares de internautas), esse episódio revela um estado de coisas que transcende, a meu ver, a discussão pura e simples dos limites de atuação do ministro Gilmar Mendes. Diante desta submissão inexplicável do presidente da Câmara dos Deputados e, por extensão, do Poder Legislativo, às vontades do presidente do STF, cabe a todos nós, jornalistas, refletir sobre os nossos próprios limites. Na semana passada, diante de um questionamento feito por um jornalista do Acre sobre a posição contrária do ministro em relação ao MST, Mendes voltou-se furioso para o repórter e disparou: ‘Tome cuidado ao fazer esse tipo de pergunta’. Como assim? Que perguntas podem ser feitas ao ministro Gilmar Mendes? Até onde, nós, jornalistas, vamos deixar essa situação chegar sem nos pronunciarmos, em termos coletivos, sobre esse crescente cerco às liberdades individuais e de imprensa patrocinados pelo chefe do Poder Judiciário? Onde estão a Fenaj, e ABI e os sindicatos?
Apelo, portanto, que as entidades de classe dos jornalistas, em todo o país, tomem uma posição clara sobre essa situação e, como primeiro movimento, cobrem da Câmara dos Deputados e da TV Câmara uma satisfação sobre esse inusitado ato de censura que fere os direitos de expressão de jornalistas e, tão grave quanto, de acesso a informação pública, por parte dos cidadãos. As eventuais disputas editoriais, acirradas aqui e ali, entre os veículos de comunicação brasileiros não pode servir de obstáculo para a exposição pública de nossa indignação conjunta contra essa atitude execrável levada a cabo dentro do Congresso Nacional, com a aquiescência do presidente da Câmara dos Deputados e da diretoria da TV Câmara que, acredito, seja formada por jornalistas.
Sem mais, faço valer aqui minha posição de total defesa do direito de informar e ser informado sem a ingerência de forças do obscurantismo político brasileiro, apoiadas por quem deveria, por dever de ofício, nos defender.
Leandro Fortes
Jornalista
Brasília, 19 de março de 2009
Foram enviadas cópias desta carta para Sérgio Murillo de Andrade, presidente da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj); Maurício Azedo, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI); e Romário Schettino, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF)’
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