Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Artista de sete ou oito instrumentos

A última vez que encontrei o Reynaldo Jardim, há um mês e meio, ele tentava descer a escadaria escarpada do Centro Empresarial Brasília, no Setor de Rádio e Televisão Sul. Junto com os cumprimentos, veio uma carrada de impropérios contra a mãe do arquiteto idiota que projetou aquela escada absurda, fonte permanente de tombos e hematomas.


Naquele dia, ele estava especialmente chateado com o tratamento que havia recebido por parte do júri do Prêmio Jabuti, que classificou Sangradas Escrituras em segundo lugar na categoria poesia. ‘Você leu a crônica da Conceição’? Sim, eu tinha lido o artigo da repórter Conceição Freitas no Correio Braziliense, que resumiu a indignação que todos nós, os amigos e admiradores, havíamos sentido. O livro-testamento, com o balanço de 60 anos de criação poética merecia mais, mesmo daquele júri obviamente burocrático.


Ao morrer em Brasília no dia 1º de fevereiro, aos 84 anos, vítima de um aneurisma da aorta abdominal, Reynaldo Jardim saltou para o espaço da mitologia. E aí vai permanecer até que alguém se aventure à tarefa de contar, de maneira mais objetiva, a sua biografia de aventureiro e artista da palavra, do desenho, da escultura.


Sensibilidade vs. racionalidade


Algumas de suas aventuras são conhecidas, ainda que de maneira superficial ou controvertida. Foi ele, por exemplo, o inventor do ‘Suplemento Dominical’ do Jornal do Brasil e de seu ‘Caderno B’, modelo seguido por todos os cadernos de Cultura dos jornais brasileiros. Há quem atribua a reforma gráfica do Jornal do Brasil, realizada nos anos 1950, ao grande artista mineiro Amílcar de Castro. Porém, o jornalista Janio de Freitas, que teve papel importante na reforma editorial do JB na época, assegura que Amílcar participou daquela revolução, mas en passant, sem ter sequer estado no ‘Caderno B’


Em email encaminhado a Daniel Trench Bastos para a pesquisa de sua dissertação de mestrado ‘Tentativa de Acerto, a reforma gráfica do Jornal do Brasil e a construção do SDJB’, Jânio é taxativo:




‘Já que você tratará de questões gráficas, apenas sugiro que procure evitar a injustiça, tantas vezes cometida, de não atribuir a Reynaldo Jardim a criação gráfica do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (o SDJB) e do Caderno B. Ele, e só ele, foi o criador gráfico desses dois suplementos. Com o SJDB já consagrado, Amílcar de Castro teve por lá uma passagem muito breve, nem dois meses, e desenhou poucas páginas, que não chegaram a ser impressas em conformidade com o desenho: Amílcar relutava em fazer medição de textos, para definir sua dimensão especial, e o SDJB, ainda por cima, usava tipos diferentes, bem maiores do que os do jornal. As composições, ou não cabiam no espaço desenhado, ou sobravam demais. Reynaldo mudava o desenho já na oficina e o Amílcar se irritava, atribuindo as modificações a discordâncias estéticas que não existiam, até porque seu desenho seguia modelação geral dada por Reynaldo. No Caderno B, Amílcar não esteve. Se você puder compreender minha posição, de restringir-se aqui a tentar situá-lo contra a injustiça repetitiva e revoltante que esquece o Reynaldo, fico-lhe muito agradecido’ (cópia da dissertação de Daniel Trench Bastos pode ser obtida aqui).


Ainda nos anos 1950, Reynaldo Jardim foi também editor da revista O Marco, que reunia a fina flor da intelectualidade no Rio de Janeiro. Numa de suas edições, lê-se uma entrevista com Vinicius de Moraes em que o poetinha traçava um panorama da poesia nas Américas, e defende a peregrina ideia de que os poetas brasileiros, que ele considerava burocráticos, deviam começar a compor sambas. Um ou dois anos depois, em 1954, ele mesmo, Vinicius, presenteava o Brasil com a peça Orfeu da Conceição, e outros dois anos mais à frente começava a trabalhar com Tom Jobim, prenunciando a Bossa Nova. Reynaldo Jardim, um ‘fotógrafo do efêmero’ (parodiando um verso de sua Paixão segundo Barrabás), estava ali, marcando cerrado os acontecimentos relevantes da vida cultural brasileira.


Outra prova dessa última afirmação é que logo em seguida, no início de 1959, Reynaldo Jardim estava metido com o Grupo Neoconcreto, rompido com o Movimento Concreto, sob o argumento de que os concretistas haviam se deixado dominar pela racionalidade. Em arte, o primado é da sensibilidade, diziam os neoconcretos. Em parceria com Lygia Pape, Reynaldo produziu então o Balé Neoconcreto. Entre seus parceiros encontravam-se Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, a outra Lygia, Clark, Theon Spanudis, Décio Vieira e Hélio Oiticica.


O Sol na banca de revistas/ me enche de alegria/ e preguiça’


Na época, Reynaldo, a arte e a política andavam de mãos dadas. Assim, entre 1962 e 1964, ele estava entre os autores da série ‘Violões de Rua’ dos Cadernos do Povo Brasileiro, editados pela editora Civilização Brasileira de Ênio da Silveira. Só tinha gente da pesada: Moacyr Félix, Affonso Romano de Sant’Anna, Alberto João, Clóvis Moura, Felix de Athayde, Ferreira Gullar, Francisco Dias, Geir Campos, Heitor Saldanha, Homero Homem, Paes Loureiro, Joaquim Cardozo, José Carlos Capinam e Luiz Paiva de Castro. A série era uma iniciativa do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Abortada pelo golpe de 1º de abril de 1964, buscava, nas palavras de Moacyr Félix, ‘a utilização em termos de estética, de temas humanos baseados na certeza de que tudo aquilo que é verdadeiro serve ao povo, de que o uso apaixonado da verdade é o instrumento por excelência da humanização da vida’.


Veio o golpe, mas não levou o nosso personagem. Em 1968, lá estava Reynaldo Jardim aprontando de novo, dessa vez à frente de O Sol, um suplemento do Jornal dos Sports, que logo depois do lançamento ganharia vida própria e conquistaria a simpatia da juventude e das esquerdas cariocas. Parte da história da experiência desse jornal-escola, pioneiro da imprensa alternativa brasileira, foi contada por Tetê Moraes e Martha Alencar no documentário O Sol – caminhando contra o vento. A outra parte, que liga a fundação do jornal a uma iniciativa do Movimento Revolucionário Nacional (MNR), de Leonel Brizola, ainda está por ser esclarecida.


Não pretendo sequer esboçar aqui a biografia de Reynaldo Jardim, por isso só posso acrescentar que ele passou uma temporada em Curitiba, onde trabalhou no Correio de Notícias, foi diretor do Museu da Imagem e quase inventou uma língua, o Vronsk. E que passou por Goiânia, onde trabalhou no Diário da Manhã com Washington Novaes, e se casou com a jornalista Elaina Daher, com quem teve três filhos com nome de anjos: Gabriel, Micael e Rafael. Do primeiro casamento teve Teresa e Joaquim; este já morreu, mas deixou netos.


O jardim do poeta


Em Brasília, onde viveu seus últimos 20 e tantos anos, Reynaldo Jardim também pintou o sete. Foi editor do ‘Segundo Caderno’ do Correio Braziliense e, no governo José Aparecido (1985-1988), diretor da Fundação Cultural. Quem marcava audiência era recebido por ele deitado numa rede, descalço. O próprio José Aparecido contou que Reynaldo criou projetos relevantes, entre eles o Instituto de Saúde Mental, em funcionamento até hoje.


Agora no final da vida, ele concentrou as forças na edição de seu testamento, o livro Sangradas Escrituras. É um catatau de 1.176 páginas, que saiu em edição limitada, contendo quase toda a sua produção poética. Muitas não couberam na obra por conta do formato tridimensional, neoconcreto.


Neste país que despreza os seus gênios, ou deles sequer toma conhecimento, alguém precisa debruçar-se seriamente, e logo, sobre essa obra. É preciso desbastá-la dos excessos – e dos escolhos que todo jardim tem – para mostrar ao Brasil um de seus poetas mais inventivos. E que também era jornalista, designer gráfico, desenhista, escultor e que pintava e bordava nas horas vagas.


***


Um poema de Reynaldo Jardim


 


Caótica


A derradeira epopéia


1


Aqui, imerso em fogo de água e


metal; aqui, ensandecendo a


ferrugem do sal; o ar se diz


solvendo no próprio nitrogênio;


um deus regurgitando arte, ofício,


engenho; aqui, onde a carência


agoniza de excesso; aqui se


inaugura o verso do universo.


 


2


Já bastara sentir o pulso em


descompasso; o pâncreas solvendo


lixívia sobre o baço; o fígado


gemendo angústia compulsiva; a


medula dos ossos em aço enrijecida; o


fêmur amolecendo o cálcio de sua


fibra; já bastara supor vencida a validade


do tempo de existir qualquer fertilidade.


 


3


Eis que despenca no horizonte


o sol trincado; em penca todo fruto


apodrecendo a polpa; a grama


amarelando o verde da alcatifa;


o vendaval de estrelas nenhuma


estrela poupa; derrete-se em sorvete o


topo da montanha; corrompe-se a


medular entranha do granito.


 


4


Engravidando a terra, a curva do infinito;


o mar erotizando opulência e pasmo;


fervilha sob ondas a fúria do espasmo;


o canto de Iemanjá resulta em sortilégio;


a noite deixa o dia sem cura e remédio;


da lua nem sinal no céu tão malsinado;


o Tao é mausoléu no espaço introvertido:


o espaço se conturba, de dores contorcido.


 


5


A abelha chora a dor do tempo


trucidado; raspa, em brasa candente, o


ventre do batráquio; o salto do


leopardo estanca em pleno vôo; a


asa da gaivota depena-se no ar; o


felino evapora quando ia saltar; a


bailarina chora a impossível dança;


finda-se em descompasso o som-desesperança.


 


6


Sangram leite das mamas, vacas emplumadas;


o pasto esturricado em cinza se escama;


carnes se corrompem no cheiro azedo e


acre; revoada de urubus teria seu


repasto; na carniça o veneno


da morte os aguarda; sucumbem os


comensais à primeira fisgada; sem


saber que o destino tramou a armadilha,


 


7


uma hiena faminta convoca a matilha;


no ar se esgarceia a pele do ozônio;


queimaram-se, nos anjos, fusíveis e neurônios;


sereias e duendes estertoram-se em


massa, sem ter quem agradeça sonho e


fantasia; sem extrema-unção, na unção da


agonia; sem bálsamo de alívio, pompa e lenitivo;


sem pombas layoutando nova assimetria.


 


8


O intestino do sol geme claras


e gemas; cristais perdem a volúpia


de bêbados fonemas; na argila


rochosa, nenhum estratagema:


o mercúrio se aquece e logo


cristaliza; o alquimista insano


mergulha em pesadelos, ao perceber


que em chumbo anoiteceu o ouro;


 


9


O sujo caramujo perde viscosidade,


razão de tanto brilho, paixão de seu orgulho;


a lesma pasmacenta pasma agoniada,


revolvendo a lixeira, submersa no entulho;


cavernas desabam feridas de erosão;


áspides suicidas ingerem formicida;


morrem de congestão os bichos das goiabas;


até as colibris se tornam depravadas.


 


10


O Nilo areniza o leite de seu leito;


o Negro pulveriza lendas e segredos;


o Velho Chico assume a derrota senil;


o Tietê moribundo é um riacho de medo;


a bandeira estremece, não há mais Brasil;


Portugal e Espanha sumiram do mapa;


Piauí e Alemanha, áridas sucatas.


A Europa lamaçal, paraíso de larvas.


 


11


Não é apenas o estrondo fúnebre do parto


de bombas, a estraçalhar a carne do


oceano; nem tampouco o furor de fúria do


rochedo, sobre o planalto de febre e desencanto;


nem seria a combustão de estrelas frágeis


chocando-se perdidas no universo flácido;


ou o espaço sem vento, esmagando o tempo;


o tempo dissolvendo o arco do compasso.


 


12


Sem lastimação, lamúria ou liturgia,


não há carpideiras pranteando o agora,


reinventando a aurora, anunciando o dia;


não há quem doutrine nova teologia;


o epílogo do tempo implantou sua crava;


a máquina do sêmen perdeu graça e graxa;


não há mais silogismo, pudor, escolástica;


ninguém articula a última palavra.


 


13


Nada rasteja, nada revoa: no ar;


nada repulsa, nada pulsa: no mar;


nada reclama, tombada luz: solar;


nada inflama, gélido gás: polar;


nada conturba, a turba torpe: letal;


nada contrai, é o horror: crepuscular;


nada flutua a funda dor: é terminal;


nada do nada, nada é: ponto fatal.


 


14


A fadiga do horror destrava a curva da adaga;


derrete-se no aço a textura do osso:


neurônios decepados a memória apagam;


o estado do silício é silêncio gasoso;


lépido flagelo flagela outros flagelos,


destrói o contexto, fracciona e emperra;


em verso a cesura fratura, no poema,


o transcurso tragicômico do esperma.


 


15


Ninguém vislumbra uma pausa silenciante;


o histérico estrondar da catedral ruindo


barra tanto seus berros que se torna extinta


a flueza do vento transudando linfa;


em tudo uma fuligem cinza incandescente;


grilos a ressoar silvo intermitentemente


a pandemia grassa, dolorido insight,


Bill Gates se implode em n nanobites.


 


16


O nada absoluto instala a prepotência;


excomunga do verbo os modos temporais;


interrompe-se o movimento de ascendência;


os advérbios são manchetes siderais;


pois que o futuro é esperança irrelevante,


não há filosofia, mística esotérica,


piedade, ternura, medo, compaixão,


nem a lendária espera da ressurreição.


 


17


Antes mesmo que do psicosmo despencasse


incauto meteoro de labareda aflita,


a Antártica a inocência conspurcara


estraçalhando o testemunho de seus vidros;


já a Terra inclinara o desleixado eixo:


já se apodreciam, das focas, os ovários;


não pulsava, ao norte, a síndrome da morte;


nem latejava fria a síndrome devida..


Todavia


caverna de útero abissal


– blindada por cristais de aço-madrepérola –


abriga algo






?alga


?gene


?pólen


vírus?


a energia seminal


alma primordial




e o algo resiste




insiste, persistente,


dá graças a Deus


pelo esplendor da Vida


faz o sinal da cruz


– unhappy end –


agoniza e








expira


 


(Reynaldo Jardim – 26.05.2009)

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Jornalista, Brasília (DF)