Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As mulheres no carnaval

O discurso jornalístico e o publicitário unem-se na articulação de imagens e textos preconceituosos para representar as mulheres no período do carnaval. Os receptores são brindados – antes, durante e depois da proclamada ‘maior festa brasileira’ – com uma sucessão de matérias e anúncios, nos mais variados meios e veículos, como televisão, internet, jornais e revistas impressos, sobre as beldades seminuas que requebram para os olhos ávidos dos profissionais de comunicação do país.

Além de repetitivo e monótono, pode-se afirmar que se trata de um retorno tosco à relação de assimetria entre os gêneros masculino e feminino, o qual vem sendo denunciado por grupos feministas de nacionalidades diversas há mais de um século. Mas deixemos as teorias de lado, para nos atermos às questões de ética e legislação jornalística e publicitária. O Conar – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – e o Código de Ética dos Jornalistas oferecem subsídios claros e substanciosos para que possamos questionar o trabalho dos colegas e para que possamos refletir sobre a formação dos futuros profissionais da área.

O caso da campanha publicitária realizada pela agência Mood para a cerveja Devassa, e uma matéria da Folha Online publicada no último dia 3 de março sob o título ‘Por um milhão, Sandy ‘vira devassa’ em campanha de cerveja’, cujo mote era justamente a estrela do filme publicitário da campanha, são emblemáticos da postura irresponsável que imprensa e publicidade assumem nesses casos. Os profissionais de ambas as áreas dão-se as mãos e mostram uma banana para questões relativas a responsabilidade social, ética e compromisso público.

Degustadas, apreciadas e descartadas

A campanha da Devassa foi lançada alguns dias antes do carnaval. Dois filmes mostram Sandy – a garota que há alguns anos fazia apologia da virgindade e dos bons costumes – divulgando uma imagem absolutamente retrógrada acerca do papel das mulheres no mundo contemporâneo – ora simulando um striptease no palco para uma plateia formada por homens de expressão gulosa e por mulheres boquiabertas, ora dançando sobre um balcão, com roupas mínimas, como de hábito nos comerciais de cerveja realizados no Brasil. E encerra-se com a frase síntese a que a mensagem visa a significar: ‘Afinal, todo mundo tem um lado devassa!’

À parte as polêmicas fúteis que analistas de origens diversas se empenharam em protagonizar no Twitter acerca da tentativa frustrada da cantora de reverter a imagem de mocinha casadoira de anos atrás, nenhuma palavra acerca da representação das mulheres como objeto.

Na matéria citada acima, veiculada pela Folha Online, o tema é tratado com a mesma banalidade que caracteriza o comercial. O repórter começa descrevendo o anúncio, em seguida traz uma fala de Aaron Sutton, diretor de criação da Mood, sobre as razões que os levaram à escolha de Sandy para protagonizar a campanha – uma tentativa de calar a boca dos descontentes com a campanha do ano anterior da cerveja, estrelada por Paris Hilton –, continua com a revelação do valor recebido pela garota – a bagatela de um milhão de dólares – e com um breve depoimento da mesma sobre as razões para ter aceito o convite e finaliza com a afirmação de Augusto Cruz Neto, sócio-diretor da Mood, de que a ideia da equipe de criação foi dissociar o caráter devasso do produto para associar a marca à descontração. Nenhuma palavra sobre o impacto social despertado pela associação entre mulher e objeto, a qual resulta na concepção de que as mulheres, assim como as cervejas, podem ser degustadas, apreciadas e, quiçá, descartadas, conforme o gosto do freguês.

Direitos e deveres

Jornalistas e publicitários fecham os olhos e tapam os ouvidos frente às reivindicações do novo consumidor (na verdade, nem tão novo assim), um indivíduo preocupado com os abusos da utilização de imagem, de um modo geral e, mais especificamente, com a representação dos integrantes das chamadas minorias sociais: mulheres, negros, homossexuais, indígenas, dentre outros.

Na seção I, artigo 2º do Conar, afirma-se que todo anúncio deve ser preparado com senso de responsabilidade social. Mais adiante, no capítulo II, artigo 19, há uma tentativa de deixar mais explícita a recomendação: ‘Toda atividade pública deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana.’ Diante disso, não restam dúvidas de que a autorregulamentação a que os próprios publicitários se propuseram nos anos 1980 está ciente do impacto político, social e cultural que as produções midiáticas provocam. Associar a imagem das mulheres ao de uma mercadoria que se compra, utiliza e descarta, como outra qualquer, não está desvinculada do imaginário nacional que inferioriza as mulheres, resultando em violências múltiplas que esse grupo enfrenta no espaço público e/ou doméstico.

É chegado o momento dos publicitários deixarem de lado o pânico que os acomete diante da necessidade de conhecer, consultar e aplicar as normas que regem a sua profissão. Roberto Schultz, na obra O Publicitário legal: alguns toques, sem juridiquês, sobre o Direito da Publicidade no Brasil, aborda essa questão, tentando traçar caminhos a serem trilhados tanto por profissionais quanto por estudantes e professores da área.

Já o Código de Ética que rege a profissão dos jornalistas também é bastante explícito sobre a responsabilidade que a profissão dos jornalistas encerra. No capítulo I, que reza sobre o direito à informação, artigo 2º, inciso III, afirma-se: ‘A liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão.’ Não é possível ignorar, portanto, que o exercício da profissão e a liberdade de imprensa implicam tanto direitos quanto deveres. No caso abordado, o de estar ciente que o conteúdo produzido pela imprensa auxilia na construção da realidade, inclusive na possibilidade de que se modifiquem preconceitos e deturpações acerca de um determinado grupo social.

Em tempo, publicitários: as mulheres também gostam de cerveja e, em sua maioria, não se sentem representadas pelos anúncios que têm sido produzidos pelas agências do país.

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Jornalista e professora de Comunicação da Universidade Católica de Brasília e doutora em Estudos Feminista e de Gênero pela Universidade de Brasília