Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cartunistas são alvo crescente de violência

Luz e Charlie Hebdo

Luz mostra capa do Charlie Hebdo após o ataque (Foto: Philippe Wojazer/Reuters)

O cartunista Rénald Luzier, conhecido como Luz, anunciou sua saída do semanário satírico Charlie Hebdo. Por conta de um atraso, Luz foi o único cartunista sobrevivente do atentado que deixou oito membros da equipe do jornal mortos, em janeiro de 2015. Na ocasião, dois extremistas islâmicos, irmãos, invadiram a redação em Paris. Ele também foi o responsável por ilustrar a primeira capa do Charlie Hebdo após a tragédia.

O cartunista, que trabalhava no semanário desde 1992, explicou em entrevista ao jornal francês Libération que sua saída é alheia a tensões internas na publicação e que o trabalho sem a presença dos colegas mortos no ataque tornou-se “insuportável”. Luz contou que já pensava em deixar o Charlie há algum tempo, mas que permaneceu por solidariedade aos colegas remanescentes.

Especula-se, no entanto, que possa haver outros motivos para sua saída. Tendo estado à beira da falência antes do atentado, o Charlie Hebdo viu-se salvo por doações financeiras depois que a frase “Je suis Charlie” (“Eu sou Charlie”) viralizou após a morte de parte de sua equipe, tornando-se um símbolo da defesa da liberdade de expressão na imprensa.

Diz-se, porém, que sua equipe ficou dividida em relação ao uso do dinheiro doado e que alguns membros responsáveis pela gestão atual acusaram outros de “falta de transparência”. Quinze dos 20 gestores atuais, incluindo Luz, chegaram a propor que todos os funcionários se tornassem acionistas igualitários do semanário. A informação divulgada, entretanto, foi que toda a doação de €4.3m (quase R$15 milhões) seria integralmente revertida às famílias das vítimas.

Padrão global de intimidação

Os assassinatos no Charlie Hebdo não são um fato isolado na questão da violência contra profissionais da imprensa. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), existe um padrão global de intimidação contra os cartunistas políticos e satíricos.

Joel Simon, diretor-executivo do CPJ, reitera que os ataques e ameaças não vêm apenas de extremistas, mas também de governos. “Os cartuns editoriais têm a capacidade de transmitir temas complexos de maneira simples, porém profunda, que cruzam facilmente as fronteiras e idiomas”, disse. “Mas o mesmo fator que torna tais caricaturas poderosas é aquele que torna os cartunistas tão vulneráveis”.

Para muitos chargistas, o aumento das taxas de penetração de seu trabalho na internet pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição. Ao mesmo tempo em que o meio amplifica suas vozes para leitores que talvez nunca fossem ter acesso aos seus trabalhos, também permite que os inimigos da imprensa monitorem e reajam aos cartuns que consideram dignos de censura.

O desenhista sul-africano Jonathan Shapiro, que assina seus trabalhos com o codinome Zapiro, diz que não importa onde você esteja: alguém sempre vai ver seus cartuns e pode reagir com violência. Um desenho de Maomé feito por ele para o Mail & Guardian, da África do Sul, em 2010, rendeu-lhe várias ameaças de morte. O jornal também foi obrigado a pedir desculpas por publicar o trabalho.

Na Malásia, o cartunista Zulkiflee Anwar Ulhaque, conhecido como Zunar, foi processado pelo governo local por insubordinação e pode pegar mais de 40 anos de prisão caso seja condenado.

No Equador, o cartunista Xavier Bonilla corre o risco de sofrer um processo criminal após publicar uma charge ridicularizando um discurso feito por um político do partido do presidente Rafael Correa. O jornal no qual Bonilla trabalha, El Universo, também foi obrigado a pedir desculpas publicamente após a veiculação do cartum.

Já a cartunista norte-americana Molly Norris vive escondida desde abril de 2010, após protestar na internet propondo aos colegas que “desenhassem um Maomé por dia”. Devido a ameaças, ela precisou trocar de identidade e mudar-se de sua casa, em Seattle. Seu nome apareceu numa revista jihadista, constando na lista de “mais procurados” pela Al-Qaeda.

Prageeth Eknelygoda, cartunista do Sri Lanka famoso por fazer críticas ao governo de Mahinda Rajapaksa – presidente do país entre 2005 e 2015 –, está desaparecido desde 2010. Seu sumiço se deu em meio à campanha militar de Rajapaksa para subjugar uma insurgência étnica na região norte do país.

Em 2011, o cartunista sírio Ali Ferzat – crítico do regime do presidente da Síria, Bashar al-Assad – foi sequestrado por desconhecidos e teve as mãos quebradas para que não pudesse mais desenhar. Ferzat foi abandonado com vida em uma estrada e atualmente vive exilado no Kuait.

O cartunista indiano Aseem Trivedi chegou a ser detido temporariamente por retratar a corrupção política na Índia. As acusações de insubordinação foram retiradas em 2012.

No Irã, na África do Sul e na Venezuela há registros de diversos casos de cartunistas que enfrentam ações legais, multas, perseguição e detenção devido a suas obras.

Robert Russell, diretor-executivo do Cartoonists Rights Network International, grupo ligado aos direitos e monitoramento dos profissionais do ramo, diz que existe praticamente uma “fórmula” para se reconhecer com antecedência quando as coisas estão ficando arriscadas para cartunistas. Ele crê que qualquer Estado falho ou líder frágil que vise uma eleição ou algum tipo de transição política estará sempre reprimindo os cartunistas durante os períodos de insegurança e conflitos. À época do atentado ao Charlie Hebdo, sua fundação publicou mais de 500 desenhos satíricos de todo o mundo, um gesto para homenagear os mortos no ataque e reafirmar a liberdade de expressão.

Limites do humor

Embora o crime contra a equipe do Charlie Hebdo tenha sido recebido com choque no mundo todo, existe também uma corrente que questiona os limites entre crítica política/religiosa e humor. Ao noticiar a morte dos jornalistas franceses, muitos veículos se recusaram a reproduzir os cartuns causadores da revolta entre grupos islâmicos.

E quando a PEN American Center, braço americano da International PEN – organização mundial de escritores que defende a liberdade de expressão –, decidiu conceder o “Prêmio de Coragem na Liberdade de Expressão” ao Charlie Hebdo, a associação incitou a ira de diversos escritores membros, que se recusaram a participar da cerimônia de premiação, em maio de 2015. Além disso, mais de 150 pessoas assinaram uma carta de protesto pela homenagem. Embora o ataque terrorista ao jornal tenha sido descrito como “revoltante e trágico”, o consenso entre os opositores era de que havia “uma diferença entre apoiar a expressão que viola o aceitável e recompensar tal expressão”.

Coincidentemente, na mesma semana da cerimônia realizada pela PEN, ocorreu um atentado a uma exibição de charges sobre o profeta Maomé no Texas; dois agressores armados foram mortos pela polícia na ocasião. Embora os jornalistas do Charlie Hebdo tenham se recusado a reconhecer quaisquer similaridades com o ataque a sua redação em Paris, o episódio serviu para reafirmar os riscos corridos por artistas que ousam criticar determinados nichos da sociedade.

Até hoje o cartunista dinamarquês Kurt Westergaard sofre ameaças devido a caricaturas polêmicas de Maomé publicadas no jornal Jyllands-Posten entre 2005 e 2006. O trabalho de Westergaard rendeu protestos e boicotes em diversos países, bem como ameaças de morte à equipe do jornal. Embora nenhuma delas tenha se consolidado e o veículo tenha sido absolvido das acusações de crime contra crenças religiosas, os relatórios do CPJ mostram que o cartunista e dois de seus colegas ainda figuram na lista de alvos da Al-Qaeda.

Os próprios profissionais que realizam tais sátiras reconhecem que a crítica é uma via de mão dupla. “Já fui chamada de anticatólica, antimuçulmana e ‘Goebbels do feminismo’”, disse Signe Wilkinson, cartunista vencedora de um Prêmio Pulitzer e mais conhecida por seu trabalho no Philadelphia Daily News. “Meus leitores têm toda a liberdade para reclamar da forma enérgica e ofensiva que quiserem. Mas eles simplesmente não têm o direito de atirar em mim”, declarou ela.

Arifur Rahman, cartunista premiado de Bangladesh, foi preso em 2007 durante mais de seis meses após retratar o profeta Maomé como um gato no semanário satírico Alpin – que chegou a receber suspensão das atividades por parte do governo. Após o episódio, Rahman solicitou e recebeu asilo político na Noruega. Hoje, vive recluso, evitando divulgar informações na internet sobre seu paradeiro. “Os religiosos ficam procurando episódios de blasfêmia em todos os lugares, mas nós cartunistas só estamos tentando fazer as pessoas rirem”, declarou, afirmando que, antes de ocorrer o atentado ao Charlie Hebdo, jamais imaginava que alguém pudesse matar por causa de um cartum.

“A imprensa é uma força poderosa – esteja ela representada por um jornal internacional ou por um blog de um cartunista – e temos de tomar muito cuidado com esse poder e ser muito deliberados sobre o que estamos fazendo com isso”, alertou Mark Baumgarten, editor-chefe do Seattle Weekly.

 

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