No país que se apresentava ao mundo como exemplo de respeito à liberdade de imprensa, jornalistas sucumbem hoje à tentação de se tornarem meros apêndices patriotas da política externa oficial. Como Larry Rohter, em textos sobre Brasil, Venezuela e Colômbia. Ou Judith Miller, nas reportagens que tentaram tornar realidade a fantasia guerreira das armas nucleares, químicas e biológicas do Iraque.
Não é de estranhar, assim, que heróis da liberdade de expressão e da imprensa livre tenham agora de ser encontrados fora das redações. Quero render homenagem a um deles, que respeito há anos como acadêmico e autor de excepcional capacidade, rigor e talento: o professor Kenneth Maxwell acaba de demonstrar que não troca sua integridade e seriedade intelectual por honrarias, mordomias ou vantagens materiais.
Britânico de nascimento, 63 anos, esse pesquisador e historiador a quem o Brasil, Portugal e a América Latina devem obras preciosas que devassaram os autos da Inconfidência Mineira e reavaliaram o legado singular do Marquês de Pombal, deixa de ser scholar residente do Council on Foreign Relations porque não se submete aos que insistem em reescrever a História para falsificar nela a própria imagem.
Falta aos que agem assim coragem suficiente para o confronto aberto. Eu me refiro ao mais conspícuo – o ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Acostumou-se a agir na sombra e usar gente com igual desapreço pela verdade histórica e pela honestidade intelectual. Já expus neste Observatório, há dois anos, em dois artigos, os expedientes a que recorre essa figura patética de um período melancólico na obsessão de adulterar a verdade [veja remissões abaixo].
Professor atrevido
Kissinger tentou impedir, para tanto indo à última instância judicial, que o público tivesse acesso ao conteúdo de documentos e gravações de sua época na Casa Branca e no Departamento de Estado. Perdeu a batalha mas protelou por mais alguns anos o sigilo oficial sobre o papel dele em episódios como o golpe do Chile, o banho de sangue na Argentina, o bombardeio secreto do Camboja, o massacre do Timor etc.
O mundo suspeita de que não passa de um criminoso de guerra. Ele próprio está consciente, desde que deixou Paris às pressas para fugir à intimação de um juiz para depor, que já não pode circular livremente fora de seu país. Mas dentro dos EUA, Kissinger tem inacreditável influência e o estranho poder de censurar – como acaba de fazer mais uma vez, agora tendo como alvo o historiador Maxwell.
O confronto se arrastava desde novembro, quando a Foreign Affairs – a revista de política externa mais importante do país, editada pelo Council on Foreign Relations – publicou resenha de Maxwell sobre o livro The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability (Arquivo Pinochet: um dossiê desclassificado sobre atrocidade e responsabilidade), de Peter Kornbluh, analisando documentos até então secretos.
Kornbluh dirige o Projeto Chile do National Security Archive, grupo privado que obtém a liberação de papéis (com base na FOIA, a Lei de Liberdade de Informação) e os oferece ao público, com uma análise. A resenha de Maxwell foi sóbria e séria. Se elogiava o esforço para se saber mais sobre o episódio, também se distanciava de posições do autor. Mas não omitia o papel que Kissinger sempre teimou em negar.
Foi o bastante para despertar a ira sagrada do todo-poderoso censor da História. Não veio diretamente de Kissinger, mas de seu empregado William D. Rogers – secretário-assistente para assuntos hemisféricos (1974-77) quando Kissinger era secretário de Estado, hoje servindo à firma Kissinger Associates, que faz lobby milionário pelo mundo em favor de negócios de corporações transnacionais americanas.
Num pugilato com os fatos, Rogers recorreu à tática macartista da insinuação difamatória. Acusou Maxwell de se juntar à esquerda (haverá crime mais hediondo?) para perpetuar o suposto mito do papel dos EUA no golpe comandado pelo general Augusto Pinochet, em 1973. Talvez não esperasse a resposta contundente do professor, que ousou referir-se ao assassinato do general René Schneider (em Buenos Aires), à Operação Condor (que articulou órgãos de repressão do Cone Sul) e à bomba que matou Orlando Letelier, ex-chanceler do governo Salvador Allende (em Washington).
O golpe foi demais para Kissinger. Pois o professor atrevido sugeria até que os americanos precisam de uma truth commission, como as criadas em países recém-saídos de tiranias e empenhados em descobrir a verdade. Explicou: nos EUA ela ‘está tendo de ser extraída a duras penas, como dente podre’. A resposta de Maxwell, no número de janeiro-fevereiro da Foreign Affairs, indignou a dupla Kissinger-Rogers.
Há muito mais no artigo e na troca de cartas entre Rogers e Maxwell – e sugiro que o leitor acessse os links, a partir do livro de Kornbluh [veja abaixo]. Na certa ficará surpreendido ainda com o conteúdo dos documentos desclassificados, indicando a cumplicidade dos EUA. O reconhecimento de Maxwell esbarrou no cinismo da dupla Rogers-Kissinger, que insiste no clichê de que não há smoking gun – ‘batom na cueca’, para nós.
Memória seletiva
A última carta de ataques a Maxwell, outra vez assinada por Rogers, foi publicada no número de março-abril da Foreign Affairs, mas sem a resposta de Maxwell. O professor respondeu, em seis parágrafos, mas seu texto não saiu, embora ele pertencesse à equipe editorial. ‘Rogers não pode fornecer um escudo eterno atrás do qual o patrão possa esconder-se’, dizia a certa altura à dupla. Só que isso foi arrogantemente sonegado ao leitor.
É uma agressão primária à ética, mais grave ainda por ser Maxwell o responsável, há anos, pelas resenhas sobre temas latino-americanos na revista. Ninguém de bom senso joga pela janela um emprego como o desse professor no Council. Mas foi exatamente o que ele fez, em nome da própria integridade e de uma trajetória acadêmica que já incluiu Yale, Princeton e Columbia – jóias da coroa Ivy League.
A Universidade de Harvard, talvez tão chocada como outros admiradores de Maxwell pela injustiça insólita que sofreu, apressou-se a atraí-lo para o Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos. Maxwell sai de Nova York mas continua próximo, numa das maiores universidades do país. E na certa não nos privará das colaborações regulares para a New York Review of Books, outra publicação intelectual do mais alto nível.
Ao contrário de outros, esse historiador tem ainda o mérito de viver a História com consciência. Antes da Revolução dos Cravos, em 1974, já tinha tanta certeza da mudança à vista no horizonte que buscou (e obteve) o apoio da New York Review para acompanhar os fatos em Portugal. Resultado em parte desse esforço, o livro The Making of Portuguese Democracy foi editado em 1995. Tampouco é lisonjeiro para Kissinger.
Nele Maxwell revelou a tentativa do então secretário de Estado de desestabilizar (como fizera no Chile) o governo do socialista Mário Soares. O embaixador Frank Carlucci, perplexo com a obsessão de Kissinger de ver em Soares o ‘novo Kerensky’ que ia entregar o país ao comunismo, recorreu ao ex-colega (de Princeton) Donald Rumsfeld, chefe de gabinete do então presidente Gerald Ford, para poder ignorar ordens recebidas.
Portugal pode ter escapado assim de ditadura igual à de Pinochet – ou talvez do assassinato de um presidente socialista. As ‘memórias’ altamente seletivas de Kissinger nada dizem do episódio. Como omitem ainda ter sido o secretário de Estado alertado em termos dramáticos pelo embaixador dos EUA na Argentina, Robert Hill, para deter o banho de sangue iminente. (Kissinger fez o contrário: deu luz verde aos generais).
Vã ilusão
Antes da eleição de Lula, em meio à especulação desenfreada na Wall Street e às previsões catastróficas dos correspondentes, foi ainda do professor Maxwell a voz serena e sensata. Teve de novo o mérito de enxergar a verdade melhor que a mídia. Viajou ao Brasil para testemunhar a mudança histórica e daí ridicularizou, em artigo para o Financial Times, o mercado selvagem e os jornalistas levianos.
Como explicar então que o Council on Foreign Relations e sua revista Foreign Affairs prefiram trocar a sabedoria de seu especialista em América Latina, preciso na busca do passado e na previsão do futuro, pelas vozes ressentidas de Kissinger e seus bagrinhos – que arrastaram o país a crimes de guerra no passado e hoje tentam em desespero evitar um acerto de contas com a História?
Não arrisco a resposta. Nem é preciso. A revista The Nation tentou inutilmente: as desculpas esfarrapadas do editor James Hoge, de Foreign Affairs, e a solene omissão do (ausente) presidente do Council, Richard Haas, que instantaneamente aceitaram a renúncia de Maxwell, são registradas no artigo a sair na edição de 21 de junho de The Nation, juntamente com a fuga cínica de Kissinger/Rogers [veja remissão abaixo].
Curiosamente, Rogers disse em entrevista ao New York Times (a Diana Jean Schemo, uma ex-correspondente no Brasil) que o editor Hoge prometeu a ele que não haveria resposta de Maxwell – e que a última palavra seria dele, Rogers. Maxwell admitia não voltar ao assunto, desde que não houvesse ataques pessoais. Mas mudou de idéia ao ler o que Rogers escreveu [veja abaixo remissão para a matéria do Times].
Se a obsessão de Kissinger antes era armar a mão de criminosos de guerra, agora é socorrer a própria imagem censurando a mídia e falsificando a História, na ilusão de passar de vilão a herói. Fracassou no esforço contra a desclassificação de papéis históricos, mas não desiste. E ainda tem poder e acólitos prontos a desempenhar qualquer papel. Sem falar nas outras técnicas enganosas, que citei há dois anos.
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Jornalista