A revista satírica francesa Charlie Hebdo publicou na quarta-feira (19/9) uma série de charges do profeta Maomé e deflagrou uma nova onde de indignação entre muçulmanos e de condenação por parte dos líderes franceses, enquanto se alastram os protestos provocados pelo filme Innocence of Muslims (Inocência dos Muçulmanos, tradução livre) no mundo islâmico.
As ilustrações, algumas das quais mostram Maomé nu e em poses pornográficas, chegaram às bancas de jornal na quarta-feira e receberam uma imediata repreensão do governo do presidente François Hollande, que solicitara anteriormente à revista que não publicasse as charges neste momento particularmente tenso. “Na França, há um princípio de liberdade de expressão que não devia ser sabotado”, disse Laurent Fabius, ministro das Relações Exteriores, numa entrevista a uma rádio francesa. “No atual contexto, considerando o vídeo absurdo que puseram no ar, despertaram emoções exacerbadas em muitos países muçulmanos. Seria sensato, ou inteligente, botar mais lenha na fogueira?”
Na entrevista, à France Info, Fabius anunciou que, como precaução, a França tem planos de fechar suas embaixadas em 20 países na próxima sexta-feira (22/9), dia de orações dos muçulmanos que se tornou, para muita gente, uma oportunidade para manifestar sua ira, “embora não tenham sido feitas ameaças a instituição alguma”. Um porta-voz do ministro disse que a medida também afetará os consulados, os centros culturais e as escolas.O primeiro-ministro, Jean-Marc Ayrault, divulgou o seguinte comunicado: “No atual contexto, o primeiro-ministro enfatiza sua desaprovação de todos os excessos e solicita que todos tenham um comportamento responsável.” A França tem a maior população muçulmana da Europa.
Hackerscontra “conteúdo blasfemo”
Soldados do exército libanês garantiram a segurança da residência oficial do embaixador francês em Beirute. No Egito, representantes da Irmandade Muçulmana denunciaram as charges como blasfêmias dolorosas e apelaram ao Judiciário francês para que condenasse a revista. Mahmoud Ghozlan, porta-voz do grupo, destacou que as leis francesas proíbem a negação do Holocausto e sugeriu que medidas semelhantes fossem adotadas para comentários considerados uma blasfêmia pelo Islã. “Se alguém duvida que o Holocausto aconteceu, está na cadeia”, disse Ghozlan. E acrescentou que não seria “razoável ou lógico” que o mesmo não acontecesse no caso de insultos ao Islã.
Religiosos e líderes políticos de outros países de maioria muçulmana também denunciaram as charges, mas pediram calma. Ennhahda, o partido islâmico no poder na Tunísia, advertiu seus seguidores para não caírem em uma armadilha criada por “pessoas suspeitas para sabotar a Primavera Árabe e transformá-la num conflito com o Ocidente”.
O site da Charlie Hebdo não estava funcionando na quarta-feira em decorrência de um ataque virtual, segundo o diretor editorial Stéphane Charbonnier. ProPakistani, um veículo de tecnologia de mídia paquistanês, disse que um grupo de hackers paquistaneses reivindicava ter bloqueado o site devido ao “conteúdo blasfemo” sobre Maomé. A violência desencadeada pelo vídeo difamando o profeta começou no dia 11/9, quando houve um ataque à embaixada americana no Cairo. Os distúrbios rapidamente se alastraram para a Líbia, onde um ataque à missão diplomática americana em Benghazi resultou na morte do embaixador, Christopher Stevens, e três funcionários.
Risco de “exacerbar tensões e provocar reações”
Na quarta-feira, policiais foram enviados para garantir a segurança dos escritórios da revista Charlie Hebdo. A sede da revista, que não fica longe, foi destruída por uma bomba incendiária em novembro, depois da publicação de uma paródia, com o “editor convidado” Maomé, saudando a vitória de um partido islâmico nas eleições tunisianas. Desde então, Charbonnier, o diretor editorial, está sob proteção da polícia. Ele disse que nem ele nem a revista haviam recebido ameaças em consequência da recente edição.
O primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault disse que o governo proibiria uma série de protestos planejados para sábado (22/9) em várias cidades francesas – uma semana depois que um grupo de cerca de 250 pessoas realizou um protesto, em grande parte não violento, contra o filme Innocence of Muslims em frente à embaixada americana. “Não há motivo para deixarmos que venha para nosso país um conflito que nada tem a ver com a França”, disse Ayrault à rádio RTL. “Somos uma república que não pretende ser intimidada por ninguém.” Charbonnier contestou a decisão, que qualificou de “chocante”. “O governo tem que ser consistente”, disse. “Por que haveriam de proibir essas pessoas de se manifestarem? Se nós temos o direito de nos expressarmos, elas também o têm.”
Num comunicado, o Conselho de Muçulmanos Franceses, principal representante dos muçulmanos na França, manifestou sua “profunda preocupação” com as charges e advertiu que sua publicação corria o risco de “exacerbar tensões e provocar reações”. O conselho exortou os muçulmanos franceses a manifestarem sua indignação “por meios legais”.“O CFMC respeita profundamente a liberdade de expressão, mas considera que nada justifica insultar e incentivar o ódio”, disse, num comunicado. “O CFMC convoca os muçulmanos da França a que não aceitem tais provocações e solicita que expressem sua indignação calmamente e de maneira legal.”
“Não provocamos coisa alguma”
O editor Charbonnier disse que o semanário publicou as charges em defesa da liberdade de imprensa e acrescentou que as imagens “só chocariam quem quisesse ser chocado”. Gérard Biard, editor-chefe da revista, disse: “Nós respeitamos as leis francesas. Mas se há uma lei diferente em Cabul ou Riad, não nos vamos preocupar em respeitá-la.” Esta semana, como em todas as outras, insistiu Biard, “simplesmente comentamos as notícias”. As caricaturas pretendem satirizar o vídeo que deflagrou violência no mundo muçulmano, disse, e denunciar tal violência como absurda. “O que deveremos fazer quando há notícias como esta?”, perguntou Biard. “Deveremos omiti-la?”
Conhecido por sua ironia agressiva e linguagem grosseira, Charlie Hebdo tem a reputação de ser provocadora. Além do episódio de novembro, a revista foi criticada pela decisão, em 2006, de republicar as charges de Maomé que antes haviam aparecido num jornal dinamarquês. Ainda na quarta-feira, num editorial, o jornal Le Monde defendeu o direito de a revista publicar o que quisesse, desde que obedecendo à lei francesa. Mas chamou as recentes caricaturas de “mau gosto, ou mesmo horríveis” e questionou o “senso de responsabilidade de seus autores e editores”.
Charbonnier aguentou firme. “Lamento pelas pessoas que se sentem chocadas quando leem Charlie Hebdo, disse. “Então, que poupem 2,50 euros [em torno de R$ 6,70] e não o leiam. É só isso que tenho a dizer. Não nos podem considerar responsáveis pelo fechamento das embaixadas, nem pela violência, nem pelas mortes. Não provocamos coisa alguma. Os radicais religiosos usam qualquer pretexto para começar um incêndio.” Segundo o editor, se a Charlie Hebdo parasse de imprimir imagens satíricas por conta de pressões com medo de ofensas, ficaria reduzida a 16 páginas em branco por semana. Informações de Nicola Clark e Scott Sayare [New York Times, 20/9/12] e da Reuters [18/9/12].
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