“A lei do fuzil de dois tiros, como se vê, é a expressão de uma visão do mundo. Não há bem sem mal, nem mal sem bem, e isso em proporções desiguais. O mundo claudica. Porque as instituições são absurdas, o mal parece prevalecer. Mas essa vitória, que parece inevitável, é reversível. A prova é que, no estado atual das coisas, existem já compensações para os filósofos. O que há para mudar?” (As Máscaras da Civilização, Jean Starobinski, Companhia das Letras, Companhia das Letras, 2001, p. 160)
No Jornal da Band de 12/09/2011, o veterano Joelmir Beting finalizou seu comentário sobre o preço do petróleo com o seguinte comentário:
“A Idade da Pedra acabou, mas não foi por falta de pedra.”
À primeira vista, o comentário parece singelo e de fácil interpretação. O cidadão de Tambaú procurou fazer um paralelo entre a Idade da Pedra e a Idade do Petróleo. Afinal, o petróleo substituiu diversas fontes de energia (como carvão mineral, carvão vegetal, tração animal etc…), mas não porque as mesmas deixaram de existir. Assim como o uso da pedra para fabricar ferramentas se tornou obsoleto a partir do momento em que o homem passou a fabricar ferramentas de cobre, de bronze, de ferro e de aço, as fontes de energia utilizadas antes do petróleo também se tornaram obsoletas. Além disto, enquanto o petróleo for suficientemente barato, o desenvolvimento de novas fontes de energia não será estimulado.
Linguagem coloquial
Mas a expressão usada por Beting é capciosa e evoca outras interpretações.
“A Idade da Pedra é o período da Pré-História durante o qual os seres humanos criaram ferramentas de pedra, sendo a tecnologia mais avançada naquele então. A madeira, os ossos e outros materiais também foram utilizados (cornos, cestos, cordas, couro…), mas a pedra (e, em particular, diversas rochas de rotura conchóide, como o sílex, o quartzo, o quartzito, a obsidiana…) foi utilizada para fabricar ferramentas e armas, de corte ou percussão” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_da_Pedra)
A Idade da Pedra, pressupomos com facilidade, ficou num passado muito distante. Segundo alguns especialistas, a humanidade chegou ao ápice da Idade do Petróleo, pois a prospecção desta commodity tende a declinar nas próximas décadas http://pt.wikipedia.org/wiki/Pico_do_petr%C3%B3leo. De qualquer maneira, ao menos nas culturas mais adiantadas, a humanidade já ultrapassou a Idade da Pedra. Cientificamente isto pode ser verdade, mas do ponto de vista da língua há problema.
O vocábulo petróleo, petroleum em latim, é originário da união de duas palavras: petrus = pedra e oleum = óleo http://pt.wikipedia.org/wiki/Petr%C3%B3leo. A etimologia http://pt.wikipedia.org/wiki/Etimologianão deixa dúvidas: estamos em plena Idade da Pedra Oleosa. Entretanto, em algum momento, que não pretendo aqui investigar, ocorreu um divórcio entre a Língua e a Ciência. Afinal, para uma não saímos da Idade da Pedra e para outra, sim.
Em razão da profissão, o jornalista é obrigado a adaptar sua mensagem à compreensão do maior número de pessoas da comunidade em que atua. O uso da linguagem coloquial http://pt.wikipedia.org/wiki/Linguagem_coloquialé comum no jornalismo, inclusive quando ocorrem referências à ciência, como ocorreu no caso analisado.
Três gols com um chute
Joelmir fez referência a Idade da Pedra dentro do contexto de formação do preço do petróleo. Mas não especificou se devemos ou não entender esta Idade da Pedra como aquela que ficou num passado distante ou como a Idade da Pedra Oleosa em que estamos. No primeiro caso, a interpretação é fácil e semanticamente http://pt.wikipedia.org/wiki/Sem%C3%A2nticaverdadeira (as analogias que foram feitas no início deste texto); no segundo, o sentido não é tão óbvio mas continua verdadeiro.
Segundo a teoria do Pico do Petróleo, não é o próprio petróleo que vai acabar. Na verdade, é a prospecção desta commodity que será interrompida. Portanto, mesmo que se torne técnica e economicamente inviável prospectar petróleo, sempre restará algum petróleo no fundo dos poços abertos e explorados até o limite ou naquelas jazidas que não serão exploradas em razão do elevadíssimo custo de produção e pequeno retorno. Portanto, a Idade do Petróleo não vai acabar por falta de petróleo, como a Idade da Pedra não acabou por falta de pedra.
Há ainda uma outra sugestão implícita na expressão usada pelo comentarista da Band. O petróleo está na origem de vários conflitos militares recentes e a formação da commodity depende, de certa maneira, do resultado destes conflitos. E, infelizmente, quando duas potências nucleares sedentas por petróleo (EUA e China) entrarem em rota de colisão, o céu e o inferno são o limite. Não sou pessimista, mas não posso deixar de admitir que no pior dos mundos a humanidade corre um sério risco de realmente acabar antes do fim do petróleo. No melhor do pior dos mundos, a humanidade sobrevive, mas as regiões produtoras ficarão tão contaminadas de radiação que a prospecção de petróleo será severamente afetada, senão inviabilizada.
Ponto para Joelmir Beting que, intencionalmente ou não, marcou três gols com a mesma bola num único chute. O que não é pouca coisa, pois seu comentário sugere a aplicação da lei do fuzil de dois tiros referida no início.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]