Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como continuar acreditando?

Na manhã de quarta-feira (1°/9), ao pegar o jornal La Repubblica noto que a primeira página é um horror. Estamos perigosamente começando a nos acostumar com a rotina diária do terrorismo.

As manchetes ‘falam’ de ataques suicidas em Israel, carro-bomba no metrô de Moscou, os mortos e feridos contam-se às centenas. No Iraque, a situação dos jornalistas franceses mantidos como reféns continua sem solução, mas o terrorismo não teve piedade alguma com 12 reféns nepaleses – eram pobres coitados, levados ilegalmente por uma firma jordaniana para servir em trabalhos domésticos aos estrangeiros que estão no país, a 500 dólares mensais.

Contrariando a ‘cesura voluntária’ que as emissoras de TV italianas haviam se imposto, de não transmitir imagens de execuções, a dos nepaleses tinha ido ao ar no dia anterior pela TG 4, canal de propriedade de Silvio Berlusconi, presidente do Conselho de Ministros. O vídeo foi enviado pelos terroristas via internet. Começa com uma fotografia dos seqüestrados e depois vem o filme, quando o único som é o dos tiros: as balas atingem as cabeças das vítimas, que caem agonizando. Depois são mostrados os corpos, dispostos lado a lado.

‘Sei que seremos criticados por isso que fizemos, mas espero que essas imagens nos façam refletir’, disse Emilio Fede, diretor de jornalismo da TG 4. No final do vídeo, ouve-se a ameaça de um dos assassinos: ‘O que estão vendo é o destino de todos os agentes traidores e dos espiões’.

Naturalmente os mortos não eram nem espiões nem traidores, uma vez estavam no país para limpar os banheiros dos americanos, lavar roupas dos italianos e carregar o lixo dos ingleses. Nada foi pedido que pudesse salvar suas vidas, pois nada tinham a dar. Os assassinos quiseram somente divulgar um poderoso aviso aos milhares de paquistaneses, filipinos, indianos e árabes para que deixem o país e desencorajar os que pretendam vir.

‘Como se fossem gado’

No mesmo La Reppublica também está noticiado um fato acontecido no dia anterior, o encontro dos dirigentes Vladimir Putin, da Rússia, Jacques Chirac, da França e Gerhard Schroeder, da Alemanha. Os três têm algo em comum: foram contra a invasão do Iraque.

Chirac trazia consigo a preocupação sobre a sorte de dois jornalistas franceses reféns do Exército Islâmico do Iraque e agradeceu o apoio dos dois colegas na luta contra o terrorismo. No que concerne às eleições russas, o presidente francês declarou que estas podem contribuir para uma solução política ao conflito da Chechênia, mas sempre sendo mantida a integridade da Federação Russa. Putin, por sua vez, ressaltou a gravidade da violência política com o terrorismo suicida que tem a matriz chechena. O encontro foi realizado na cidade de Sócia, no Mar Negro, onde o presidente russo passava suas férias e, tudo parecia bem.

Na Europa, setembro marca o início do outono e, para as crianças, a volta às aulas. Na Rússia, o dia 1º de setembro é importantíssimo – tanto que é chamado ‘O Dia do Conhecimento’ – e uma verdadeira festa nacional. Os estudantes vestem-se com roupas novas, desfilam, dançam e levam flores para os professores. Os jornais televisivos do meio-dia mostraram que Putin teria que interromper suas férias, pois para os estudantes da pequena cidade de Belsan (Osséssia setentrional), a principal escola local foi invadida por um grupo terrorista, certamente checheno, antes da festa começar. Imediatamente submeteram à condição de reféns professores, estudantes e os parentes de alunos. As notícias ainda estavam desencontradas, sabia-se somente isso.

No dia seguinte, o jornal Corriere della Sera, por meio de seu correspondente na Rússia, Fabrizio Dagrosei, deu maiores e dramáticas informações. Os invasores, à moda dos nazistas durante a Segunda Guerra, ameaçavam matar 50 crianças por cada um deles que por acaso pudesse ser morto. Exigiam a liberação de 27 prisioneiros de seu grupo e a retirada das tropas russas da Chechênia. Durante a tomada da escola, o pai de um aluno sacou da pistola e atirou contra um terrorista, mas logo foi morto com uma rajada de metralhadora. Tudo fazia lembrar a tragédia de dois anos antes, no teatro Dubrovka, de Moscou, quando morreram 129 reféns.

Vale transcrever o depoimento de Kazik, de 21 anos, que fora levar à escola sua irmã Dziera:

‘Deviam ser 9 da manhã, quando um caminhão militar se aproximou do prédio da escola, desceram uns 20 guerrilheiros vestidos de preto com máscaras também pretas e armados até os dentes. Logo depois chegou outro pequeno caminhão de onde desceram 4 mulheres, que tinham o cinto explosivo dos kamikaze. Foram chegando até o pátio onde estavam as crianças, algumas conseguiram fugir, as outras foram levadas para dentro da escola como se fossem gado. Eram jogadas pelas janelas, ou empurradas porta a dentro. Atiradores colocaram-se nos cantos abrindo fogo contra os que estavam fugindo, vi uma menina ser atingida pela costas e cair morta’.

Gianni Riotta, num artigo para o Corriere della Sera faz um resumo inquietante:

‘O mundo islâmico assiste a uma batalha em curso. Os rebeldes procuram uma hegemonia não para ocupar ou inserir-se no ocidente, mas para impedir a difusão da justiça, da liberdade e da igualdade. Osama bin Laden não sonha em reinar na Casa Branca ou no Eliseu, quer que todo o sagrado solo do islã seja sujeitado à lei do fanatismo’.

Uma pergunta

Em 3 de setembro, por intermédio dos despachos de Giampaolo Viseti, enviado do La Reppublica, começa-se a saber de mais detalhes: que os reféns não tinham direito a água, comida e remédios, e todos que se opuseram aos seqüestradores foram mortos. Separaram mulheres e crianças dos homens, desta forma impedindo que cada grupo soubesse o que acontecia com o outro. Outra informação, a pior de todas: o plano havia sido programado e preparado há tempos, facilitado pela corrupção das forças da ordem.

A brutalidade aparece cada vez mais intensa a cada história que é contada. Um rapaz de 17 anos conseguiu fugir, mas seu celular tocou: era sua mãe, que já sabia do ocorrido e perguntava pelo filho menor. Ele, mentindo, disse que estava tudo bem e voltou à escola para resgatar o irmão. Ao chegar perto do portão foi atingido a tiros por um terrorista – por sorte um soldado o salvou.

Uma senhora desesperada ao saber que seu marido estava dentro da escola, dirigindo-se a um terrorista pediu-lhe que mantivesse presos somente os adultos. Foi assassinada por esse motivo. Outra senhora conta que seu filho a chamou também pelo celular, dizendo que a escola estava cheia de terroristas. Disse ainda que havia esquecido seu paletó novo na pátio, e que por favor ela não se zangasse com ele.

Não se conhecia ainda o número exato de reféns, nem o de mortos. Mas o inferno ainda estava por vir. Às 11h30 ouvem-se explosões dentro da escola, reféns começam a fugir, os terroristas atiram neles e logo depois as forças especiais entram na escola. Tudo termina as 13h15. A televisão nos mostra crianças em cuecas e calcinha que correm pela rua à procura dos seus e de água, pois durante o tempo que estiveram presos só puderam beber urina. No ginásio ficaram centenas de mortos.

Os depoimentos dos sobreviventes são dantescos. Um menino de 12 anos que viu uma terrorista explodir na sua frente, uma mãe obrigada a escolher que filha deixaria morrer, um menino de 6 anos que conseguiu se esconder num buraco, uma garota de 14 anos obrigada a arrastar para fora da sala os colegas assassinados, jovens adolescentes que foram estupradas.

Finda essa tragédia, começam a chegar as aves de rapina para tirar suas vantagens. Políticos demagógicos, falsos pacifistas e os que se dizem líderes religiosos. A estes últimos cabe uma pergunta: como fazer que pais de filhos inutilmente assassinados, e crianças que foram covardemente brutalizadas, continuem acreditando na existência de Deus, se existiu a tragédia de Beslan?