Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Das reações positivas aos efeitos colaterais autoritários

O desmoronamento do News of the World foi rápido demais para a interpretação que ele exige de nós. Mas que ninguém subestime seus efeitos: ainda conviveremos por um longo tempo com os balanços éticos e econômicos do que ele representou. O fato foi quase instantâneo – seu legado terá de ser processado com mais vagar.

Por agora, podemos identificar duas ondas sucessivas de consequências aos crimes de que são acusados os responsáveis pelo extinto tabloide. Elas atingem o coração do conglomerado que era o dono do jornal, a News International, o braço britânico da gigantesca News Corp., que fatura 33 bilhões de dólares anuais com operações em quase todo o globo terrestre. A primeira onda de consequências traz alentos aos que acreditam que a informação jornalística deve observar um mínimo de decência para não trair a confiança do público. Essa primeira onda varreu a empresa com as punições éticas, não apenas jurídicas. A segunda onda é preocupante. Ela angustia especialmente os que acreditam na liberdade. Não é para menos. Vai se formando, à esquerda e à direita, um discurso que pleiteia mais controle legal e judicial sobre a atividade da imprensa. Eis o que preocupa. A primeira onda é saneadora. A segunda, uma ilusão autoritária.

Comecemos então pela onda boa.

Uma reação ética. Talvez exagerada, mas ética

Além das prisões – e das posteriores liberações mediante fiança – que alcançaram, há dez dias, Andy Coulson (ex-diretor do News e ex-responsável pela comunicação do primeiro-ministro David Cameron), e, neste final de semana, Rebekah Brooks (que se demitiu na semana passada de um dos principais cargos de comando da News International, onde começou a carreira como repórter e editora do News), as condutas indevidas do tabloide dominical de Murdoch – que, segundo o atual estágio das investigações, grampeou telefones criminosamente, invadiu caixas postais de celulares e subornou policiais e outros agentes públicos – trouxeram castigos medonhos. A morte do semanário que era o mais vendido da Inglaterra, com 2,7 milhões de exemplares, foi o mais brando de todos eles.

A operação de compra de todas as ações da BSkyB, que já estava em marcha, foi cancelada. A NewsCorp queria ser a única dona dos serviço de canais por assinaturas do qual já é sócia, mas o parlamento e a opinião pública pressionaram tanto que Murdoch teve de abrir mão. Uma nota rápida: a BSkyB, em seu site, que vale a pena visitar, conta que investe nada menos que dois bilhões de libras por ano no conteúdo de seus diversos canais. Dois bilhões de libras correspondem a – arredondemos – cinco bilhões de reais, o que é aproximadamente a metade do faturamento total das organizações Globo ao longo de todo o ano de 2010. A BSkyB não é uma figurante no mercado de mídia do Reino Unido. A compra estava praticamente acertada, e Murdoch teve de recuar. As boas relações do magnata com os políticos britânicos foram para o vinagre. Ele era o mais influente empresário da mídia em Londres. Não é mais. O quadro ficou ainda mais tenebroso no domingo, quando Sir Paul Stephenson, comissário-chefe da Polícia Metropolitana de Londres, a Scotland Yard, anunciou sua renúncia após ter sido alcançado pelos respingos do escândalo. A crise de News of the World é uma crise de Estado, sem exagero, tamanha a promiscuidade que havia entre as duas esferas.

Não é só lá. Também nos Estados Unidos o cenário se complica. A polícia e os políticos iniciam investigações para saber se os repórteres da News Corp cometeram ilicitudes em solo americano. Também nos EUA, Murdoch perdeu seu principal executivo, Les Hilton, que renunciou ao seu posto, ao que parece também numa ação preventiva.

É um revés avassalador par ao império de Murdoch. Um inferno. Uma maldição bíblica. É possível que seja, mesmo, uma pena exagerada para um só conglomerado. Há no meio dessa grande onda positiva uma sanha vingadora, com tinturas moralistas, um quase linchamento, um empastelamento moral. Desconfio que essa carga, essa colossal revanche, esteja um pouco fora de proporção. Saberemos melhor no futuro.

Mesmo assim, ela nos traz um bom sinal. Indica que, na arena da opinião pública internacional – uma arena que existe de fato embora os estudiosos da ciência política ainda não saibam direito como pensá-la –, as más condutas dos mediadores do debate público são inaceitáveis quando atropelam direitos fundamentais de pessoas comuns e frágeis. Lembremos que o estopim da indignação social contra o tabloide foi a revelação de que seus repórteres teriam invadido a caixa postal do celular de uma adolescente, Milly Dowler, que estava desaparecida. Os arapongas do jornal apagaram algumas mensagens, o que deu à família a impressão de que ela estava viva, pois estaria acessando sua caixa postal. Bem, àquela altura Milly estava morta.

Isso, exatamente isso, a opinião pública não perdoou. Foi isso o que tornou mais graves, e mais imperdoáveis, as outras barbaridades cometidas pelo tabloide.

Tateando novos limites

Consumidor voraz de futricas lascivas e de sangue sensacionalista, o público tem, geralmente, uma notória permissividade e acolhe sem maiores dramas o desrespeito à privacidade das celebridades profissionais, que ganham seu sustento produzindo fofocas a respeito de si mesmas. Sem dúvida, a permissividade do público, das plateias sedentas de cenas de alcova e de horrores cotidianos, talvez seja excessiva nessa matéria – mas isso agora não vem ao caso. O ponto é: quando a invasão de privacidades industrializada – como no caso do extinto News – agride pessoas indefesas, gente como a gente, a perversidade desse tipo de crime adquire sua conformação mais abjeta, ainda mais repugnante. É isso que não se aceita. Celebridades ganham a vida, e ganham bem, exibindo suas próprias misérias milionárias. Gente comum pode até morrer se for exposta da mesma maneira.

Foi então que, diante dessas revelações, os britânicos – e, de resto, os cidadãos do mundo – começaram a se indagar: quem esse tabloide pensa que é para entrar assim na nossa dor e no nosso luto? Essa gente não respeita nada nem ninguém? Eles não têm limites?

Aqui temos um ângulo crucial para o entendimento do que se passou. Que a imprensa investigue os homens públicos e as celebridades, desde que não cometa crimes (como escutas ilegais e invasões de caixas postais de celulares), vá lá. Bisbilhotar a vida alheia não é a prática mais elegante do mundo, mas está na regra do jogo. Que a imprensa investigue os poderosos para dar informações ao povo, fonte de todo poder, tudo bem. Agora, que os instrumentos de bisbilhotagem se voltem contra gente frágil, que deveria ser confortada e não torturada pelos jornais, aí estamos falando de uma inversão intolerável. A opinião pública disse não. E disse mais: quem comete tais atrocidades não pode ser concessionário de emissoras e não pode editar jornais por aí.

Limites do vale-tudo

Essa primeira onda foi boa, enfim, porque mostrou que um sentimento de ética elementar está vivo na mentalidade média do público. Mostrou que a sociedade não quer o vale-tudo pelo vale-tudo. Mostrou ainda que o tal “jornalismo de celebridades” e o “jornalismo sensacionalista” não são um departamento isolado, que não contamina as “áreas mais nobres” da imprensa; mostrou que a imprensa é um organismo que abarca todos os seus departamentos, com milhares de vasos comunicantes entre uns e outros. Tanto mostrou que, recentemente, o ex-primeiro ministro Gordon Brown declarou que havia sido vítima de práticas igualmente criminosas, e que as informações obtidas por esses crimes foram publicadas não no velho News, mas no Times, também de propriedade de Murdoch. Logo, a contaminação entre uma redação e outra existia. Tudo isso nos foi descortinado por esse episódio – que já é histórico.

O escândalo não ficou restrito a um único jornal. Os desvios criminosos de um “jornal de segunda linha” comprometeram o corpo mais amplo da instituição da imprensa. Por tudo isso, a primeira onda de reações traz sinais positivos. A opinião pública internacionalizada, com isso, vai tateando novos limites para a proteção tanto da liberdade – dos indivíduos e da instituição da imprensa – como do direito à informação, informação que fiscaliza o poder e investiga os poderosos. Por isso, ela pode ser avaliada como positiva.

Agora, a onda preocupante

A segunda onda – e só agora chegamos a ela – é bem menos animadora. Listemos quatro mitos que vão se formando inadvertidamente. Há muitos outros, mas fiquemos apenas com esses quatro:

** Murdoch é um vilão contumaz e tudo o que ele fez ou faz é ruim e deve ser extirpado, pois ele é a fonte dos males da imprensa.

** O desvio dos grampos, das escutas ilegais, dos subornos e das invasões de caixas postais é monopólio da News Corp.

** Os crimes da redação do News of the World só aconteceram porque faltam leis para enquadrar devidamente a imprensa.

** É preciso reforçar as barreiras legais contra o exercício do jornalismo.

Há algo em comum a esses quatro mitos: eles acalentam uma utopia autoritária e salvacionista. Não dá para acreditar neles e acreditar na democracia ao mesmo tempo.

A começar pela satanização de um indivíduo. Murdoch não é o belzebu em forma de nômade australiano globalizado e globalizante. Ele é um empresário, um ser humano, com acertos e erros. Sim, acertos. A defesa que ele faz de que o conteúdo jornalístico seja pago pelo público – dentro de proporções razoáveis, é claro – tem fundamento. Se o conteúdo jornalístico for uma commodity, ou, menos ainda, algo que se dá e se consegue de graça, a sociedade vai deixar de sustentar a reportagem investigativa independente. Se for assim, quem pagará pelo jornalismo investigativo? A publicidade, sozinha? Os milionários americanos que doam dinheiro para ONGs e só? Se o cidadão não ajuda a financiar diretamente o jornalismo, o jornalismo perde legitimidade, perde suas raízes sociais.

Não é o caráter, são as estruturas

Precisamos enfrentar esse ponto – e, quanto a esse ponto, a proposta de Murdoch não é tão despropositada assim. Não é só. Murdoch investiu no Times, que, segundo analistas que acompanham de perto a cena da imprensa inglesa, teria fechado sem a entrada da News Corp. Não quero defender Murdoch, de modo algum. Os que quiserem uma boa defesa dele, leiam o artigo de Roger Cohen, “Em defesa de Rupert Murdoch“, publicado no Estadão de domingo e em outros jornais. De minha parte, quero apenas propor que retiremos esse debate dos moralismos de costume. A coisa não virou o que virou porque o caráter do magnata australiano é assim ou assado: ela é o que é em função das estruturas industriais do imenso negócio do entretenimento, que inclui o jornalismo e vai muito além do jornalismo. É isso que devemos ter em foco. É isso que estamos desafiados a entender.

O segundo mito decorre do primeiro. É pouco provável, para não dizer que é absolutamente improvável, que as práticas das escutas, das invasões de caixas postais, dos subornos de autoridades, dos grampos e muito mais tenham se restringido a uma única redação de um único tabloide. Pela escala das operações já conhecidas – teriam sido invadidos mais de quatro mil números de telefones –, o que temos ali é uma atividade mais rotineira do que excepcional. Essa escala indica que era um mercado – e não apenas uma redação sozinha – que funcionava naquelas bases. Jornalistas e editores, assim como os detetives particulares, mudam de emprego, mudam de clientes e levam suas cadernetas de fontes e suas cartilhas de hábitos de um lugar para outro. É preciso, portanto, considerar a hipótese de que poderia – e pode – haver mais gente operando nos mesmos parâmetros. Em escala menor, com mais timidez, mas ainda assim nos mesmos parâmetros. O jornalismo sensacionalista e o jornalismo das celebridades se tornaram, a partir de agora, um tópico obrigatório para entendermos o que é a imprensa do nosso tempo. Não há mais como fingirmos que não é conosco. O fechamento do News of The World não mata a questão. Ele inaugura a questão.

Escassez de leis? Ou será excesso?

Passemos então ao terceiro mito: os crimes da redação do News of the World só aconteceram porque faltam leis para enquadrar devidamente a imprensa. Mentira. O Reino Unido dispõe de inúmeras e rigorosas barreiras legais contra a imprensa. Muito, mas muito mais que os Estados Unidos. Quanto a isso, recomendo aqui o excelente artigo de Carlos Eduardo Lins da Silva, publicado nesta série especial do nosso Observatório da Imprensa.

Em países do regime chamado commonwealth, que tem laços históricos com o Reino Unido, existem as libel laws, que protegem o cidadão contra o enxovalhamento moral que pode ser produzido pela imprensa. São leis rigorosas. Mais recentemente, porém, Londres vem avançando o sinal com o emprego das super-injunctions, uma modalidade de ordem judicial que contém duas proibições numa única medida: ao mesmo tempo, elas impedem um veículo jornalístico de noticiar determinado fato (considerado desonroso) sobre determinada pessoa e também o impedem de noticiar a proibição de que foi vítima. Várias entidades que defendem a liberdade, como a ONG internacional Artigo 19, têm denunciado as super-injunctions como uma deformação que não é abrigada por outros países do commonwealth. Mesmo assim, elas ainda estão lá. E causam estragos.

Ao mesmo tempo, no Reino Unido, a autorregulação da imprensa se desenvolveu bastante, o que descortina um cenário ambíguo. Onde existem a autorregulamentação (a autonomia para a elaboração e adoção de códigos e de regulamentos) e a autorregulação (autonomia para a aplicação das normas no dia a dia do setor, e para a decisão dos casos controversos), as chances de que os litígios sigam até os tribunais são menores. Nesse sentido, elas protegem a imprensa das interferências dos juízes. De outro lado, as instâncias da autorregulação podem inibir e constranger redações independentes, que podem sentir-se acuadas pelos pares.

A PCC (Press Complaints Comission), que desde os anos 90 é encarregada da autorregulamentação da imprensa no Reino Unido, vem sofrendo ataques pesados de todos os lados. Não vive um bom momento. Uns dizem que ela foi flexível demais com Murdoch. Outros alegam que ela é fator de repressão.

O fato é que, tanto pelo lado da lei, como pelo lado da Justiça e, também, da autorregulação, o que não faltam no país em que o News of the World circulou por 168 anos são normas, regras, penas e instâncias julgadoras. O mais provável é que os descaminhos dos jornalistas dos tabloides não se devam à escassez de leis. O mais provável é que falte à imprensa britânica mais – e não menos – liberdade.

Vejamos por quê.

Os crimes de que são acusados os responsáveis pelo News of the World já se encontram tipificados na legislação ordinária. Violação do sigilo telefônico, suborno e tráfico de influência são crimes em qualquer lugar, assim como o latrocínio e a sonegação fiscal. Se um jornalista grampeia o telefone de alguém, ele deve ser punido por isso, assim como deve ser punido um jornalista que comete assassinato ou um ministro que monta uma quadrilha. Não é preciso criar uma lei especial porque esse crime foi eventualmente cometido por um jornalista, do mesmo modo que não seria necessária uma regulamentação especial do exercício da odontologia porque um dentista cometeu um estupro dentro do consultório. A acusação que pesa sobre o pessoal do News já dispõe da lei necessária para a devida pena. Ponto.

Lembremos ainda que o esgoto clandestino do News of the World só foi descoberto e escancarado à luz do dia porque um jornal, sim, um jornal, não esmoreceu no seu apetite investigativo. Foi o Guardian, além das autoridades honestas, que levou fundo a apuração. Se hoje sabemos mais sobre o que se passava nos bueiros do News, nós devemos isso à liberdade de imprensa e a repórteres que souberam honrá-la. Talvez, também, devamos isso à sorte: por sorte, Murdoch e seus executivos não conseguiram, se é que tentaram, impor uma super-injunction contra os repórteres do Guardian. Vai saber.

Em resumo, o que temos aqui é um caso típico – e bastante didático – no qual a liberdade de imprensa foi indispensável para fiscalizar a imprensa. Sem o Guardian, provavelmente, Rebekah Brooks, Andy Coulson e outros tantos estariam lá até agora, pimpões e fleumáticos. Não foi, então, por abuso de liberdade de imprensa que aconteceu o que aconteceu. Foi por ação criminosa – que não tem nada a ver com jornalismo e com liberdade de imprensa. Aliás, foi graças à liberdade de imprensa que pudemos saber dos malfeitos.

O que também nos resolve o quarto mito, o de que seria preciso reforçar as barreiras legais contra o exercício do jornalismo. Não, não é preciso. Precisamos exatamente do oposto: menos barreiras contra a liberdade de expressão e o direito à informação.

Autoritários de esquerda e de direita

A região de Cairns, na costa leste da Austrália, é bonita. O problema são os crocodilos de água salgada. Não dá para entrar no mar. Nem pense. Parente íntimo dos dinossauros, o Crocodylus porosus fica no fundo, parado, à espreita. Dizem os conhecedores que ele até dorme lá embaixo. Quando acordado, abocanha o que bem entende. Não gosta de mastigar gente, mas dá umas mordidas e mata. Só os tubarões revidam. Esse monstro, que atinge até seis metros de comprimento, não tem muitos princípios quanto ao seu habitat: pode muito bem subir os rios, sem dificuldades de adaptação. Mais ou menos como as utopias totalitárias, que podem ser nazistas ou stalinistas, mas são igualmente totalitárias, o Crocodylus porosus vive em água doce ou salgada. Como as utopias autoritárias, acha conforto à esquerda ou à direita, sem distinção.

Murdoch transita bem entre os conservadores e os trabalhistas na Câmara dos Comuns. Caça em água doce ou salgada com igual desenvoltura. Mas, se fosse um crocodilo, não seria hoje dos mais perigosos. Enfraquecido como anda, ele seria um jacaré perdido no Rio Tietê, sem pai nem mãe. Os crocodilos mais ameaçadores são os adoradores da censura, e hoje eles se acomodam em fileiras de direita e de esquerda, tanto lhes faz. Abrem as mandíbulas para se alimentar da liberdade alheia. A pretexto de Murdoch, querem cercear ainda mais a atividade jornalística. De posse da máquina estatal, com acesso privilegiado ao comando das corporações do oligopólio da mídia, acreditam poder enquadrar a vida social. Esses são os répteis que querem morder o fio que nos resta de civilização. Não duvide, eles existem. São eles que surfam na segunda onda que agora nos alcança, nascida no epicentro da implosão do News of the World.