Duas semanas após o início do julgamento de Lewis Libby, ex-chefe de gabinete do vice-presidente Dick Cheney, a imprensa americana se delicia com os detalhes, oferecidos como aperitivos, nos depoimentos de funcionários da Casa Branca. Libby é acusado de perjúrio e obstrução à justiça no caso do vazamento da identidade secreta da agente da CIA Valerie Plame, em 2003.
Após uma longa – e polêmica – investigação, com direito até a prisão de jornalista, Libby foi o único indiciado. A identidade de Valerie foi divulgada inicialmente pelo colunista conservador Robert Novak – o que muitos analistas interpretaram como uma represália indireta da Casa Branca ao marido dela, que havia feito críticas ao governo.
No julgamento de Libby, o depoimento de Cathie Martin, ex-assessora de Cheney, revelou o funcionamento do gabinete do vice-presidente em relação à mídia. Cathie, sob juramento e em termos rebuscados, descreveu a arte da manipulação midiática: o uso de vazamentos e entrevistas exclusivas, quando deixar que um nome fosse usado e quando manter a fonte em sigilo, que veículos de comunicação eram vistos como mais suscetíveis de serem controlados e quais os melhores momentos para fazê-lo. A ex-assessora contou da existência de uma espécie de índice para jornalistas – os ‘amigos’ que poderiam ser favorecidos e os ‘críticos’, que deveriam ser evitados.
Exposição excessiva
Em 2003, Cheney foi acusado de omitir informações e permitir que o presidente George W. Bush divulgasse dados falsos sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. O marido de Valerie Plame, o ex-embaixador americano Joseph Wilson, foi quem deu início ao ataque ao vice-presidente.
A unidade de Valerie na CIA havia enviado Wilson ao Níger em 2002 para checar a veracidade das informações, contidas em um relatório, de que o Iraque estaria comprando urânio enriquecido do país para ser usado em armas nucleares. Cheney e os departamentos de Estado e Defesa queriam verificar a afirmação.
Wilson, de volta da viagem, derrubou as alegações do relatório, mas se surpreendeu quando o presidente Bush as mencionou no discurso do Estado da União, no início de 2003. A história, como foi apresentada pelo presidente, ajudava a justificar a invasão do Iraque – que aconteceria em breve. O ex-embaixador, por sua vez, sabia que a informação passada por ele teria que ter chegado a Cheney bem antes do discurso de Bush.
A partir daí, as acusações de Wilson sobre a falsidade dos dados apresentados pelo governo para corroborar a guerra apareceram em um artigo do colunista Nicholas Kristof, no New York Times, atribuídas apenas a ‘um ex-embaixador’. Segundo Cathie, na ocasião, a Casa Branca não sentiu urgência em rebater as afirmações porque ‘Kristof costumava nos atacar regularmente’. Só que, em julho de 2003, o próprio Wilson assinou um texto sobre o assunto no Times e apareceu no programa Meet the Press, da rede NBC.
Neste momento, a exposição do tema já era considerada excessiva, e Cheney, Libby e Cathie teriam passado a semana seguinte tentando vazar a informação de que o vice-presidente não conhecia Wilson, não havia pedido a missão no Níger, nunca havia recebido o relatório do ex-embaixador e só soube da história toda pela imprensa. Cheney ditou pessoalmente esses pontos a Cathie, e ela os enviou por e-mail para a secretaria de imprensa da Casa Branca.
Quando, ainda assim, a história não morreu, a então assessora se viu obrigada a ligar para a CIA para descobrir quais jornalistas estavam apurando o caso. Tudo porque ‘de vez em quando a imprensa parava de ligar para o nosso gabinete’, já que o escritório do vice-presidente era particularmente conhecido por liberar pouquíssima informação.
‘Apenas um pedaço’
Com os nomes dos repórteres na mão, Cheney pediu que seu braço direito, Libby, ligasse para eles. Enquanto isso, funcionários do alto escalão do governo Bush decidiram que o diretor da CIA George Tenet iria divulgar uma declaração assumindo a culpa por permitir que o presidente mencionasse a história do Níger. Cheney e Libby, entretanto, temiam que a medida não fosse suficiente para afastar o nome do vice do caso, e pediram que Cathie bolasse uma estratégia de mídia caso ela não desse certo.
Entre as opções apresentadas por ela estavam levar Cheney ao Meet the Press, vazar uma versão exclusiva a um repórter específico ou a revistas de notícias semanais, realizar uma coletiva de imprensa com algum nome de peso do governo, como Condoleezza Rice ou Donald Rumsfeld, ou convencer um colunista de jornal a escrever um artigo de opinião sobre o assunto.
Finalmente, a declaração de Tenet foi divulgada tarde em uma sexta-feira, dia preferido do governo para liberar notícias ruins. ‘Menos gente presta atenção às notícias no fim de sexta-feira’, afirma Cathie. ‘E menos gente ainda presta atenção no sábado, quando elas são publicadas’.
Por esta razão, passaram as ser consideradas as alternativas para limpar a imagem de Cheney. A primeira foi levá-lo ao Meet the Press, mas havia o risco de que o vice acabasse preso em questões pequenas e de parecer que o governo estava na defensiva; depois, foi a vez de pensar em um repórter para fazer um vazamento (‘como repórteres são competitivos, se você dá a informação a apenas um deles, é provável que ele escreva a matéria’, explicou Cathie em seu testemunho). Foram considerados para a ‘missão’ David Stanger, no New York Times, Walter Pincus, do Washington Post, ou alguém na Time ou na Newsweek.
No fim, ficou decidido que Libby faria uma declaração on-the-record com algumas informações anônimas ao fundo. O então chefe de gabinete ligou pessoalmente para Matt Cooper, da Time – o jornalista já havia enviado algumas perguntas para Cathie por e-mail. Cooper, depois de conversar com Libby, não usou em sua matéria a citação inteira passada por ele, o que ‘não ajudou muito’. Cathie então ligou para Cooper para reclamar. ‘Nós colocamos Libby no telefone com ele, algo que não fazemos normalmente, e ele usou apenas um pedaço da declaração’, contou ela.
Foi na semana seguinte a este episódio que Dick Cheney convidou um grupo de colunistas conservadores para almoçar. As informações são de Michael J. Sniffen [AP, 27/1/07].