Um leitor atento do caderno “Diálogos Empresariais: Governança Corporativa”, publicado em 31/01/16 no jornal O Globo e que apresenta o conteúdo do seminário de mesmo título promovido e realizado pelo jornal na cidade do Rio de Janeiro em 29/01/16, percebeu talvez a associação do evento com a Petrobrás, simbolizada pelo logotipo da empresa junto ao cabeçalho das páginas e pela menção ao apoio que a empresa teria dado a este. Até aqui, nenhuma novidade, pois não é de hoje a intrínseca relação, para o bem e para o mal, entre a mídia e o mundo corporativo, representado pelas demais organizações empresariais que, como ela, fazem parte do que é conhecido como mercado. Entretanto, se analisado à luz dos acontecimentos recentes em relação à Petrobrás, o conteúdo de tal caderno talvez tenha algo mais a revelar a respeito desta relação, particularmente ao abordar a chamada governança corporativa, expressão comum ao universo da gestão e que poderia ser traduzido, para exemplificar de forma simples, como sendo um conjunto de procedimentos que observam certos preceitos éticos, legais e organizacionais para gerir uma organização da forma o mais transparente possível.
Antes de tudo, é importante ressaltar o direito de qualquer empresa em veicular material de cunho meramente publicitário nos veículos de comunicação disponíveis, entretanto, ao tratar de um tema que, como diz seu próprio texto, remete a valores como ética, responsabilidade e transparência, e considerando a relevância política, econômica e social do assunto, um meio de comunicação que se preze teria a obrigação de se esmerar na observância de tais valores. Mas, a despeito do discurso oficial do principal acionista da empresa, parece-me que seus interesses políticos e econômicos, em conjunto com os do veículo de comunicação em questão, varreram para debaixo do tapete, mais uma vez, o bom jornalismo e os reais interesses da sociedade brasileira como um todo, um tanto farta de meias verdades.
Gestão ou congestão?
Segundo a matéria, o seminário contou com a presença do diretor de Governança, Risco e Conformidade da Petrobrás, a presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), um economista chefe de uma empresa de investimentos e um fundador de uma consultoria empresarial especializada em governança corporativa, reunidos numa mesa redonda que teve como mediadora uma jornalista. Assim, fazendo um exercício de imaginação ao associarmos as palavras “Petrobrás”, “sustentabilidade”, “investimentos”, “governança” e “informação”, nesta ordem, a cada um dos integrantes da mesa-redonda, tem-se a suspeita de que o evento foi feito para apresentar, com suposto embasamento técnico, o que a empresa pensa ou estaria a realizar neste sentido. A partir daí, afora as particularidades e discussões acadêmicas e corporativas, e considerando que a matéria retratou o mais fielmente possível o que foi apresentado no seminário, outros interesses, talvez escusos, prevaleceram sobre o dever de informar o leitor com qualidade.
Há alguns exemplos disto no conteúdo da matéria, como, por exemplo, as conhecidas expressões e pesquisas propagadas por muitos profissionais de gestão e que, em geral, causam mais um impacto momentâneo que transformações de longo prazo, além de serem muito úteis para sustentar um lucrativo mercado de consultorias, livros, cursos e treinamentos em gestão; servem também, em muitos casos e com honrosas exceções, para se criar um clima de quase histeria, de consumo desenfreado por “novidades” gerenciais que alimenta e mantém este mercado ao separar as empresas que estão “por dentro” do assunto (e, portanto, candidatas à sobrevivência) e aquelas que estão fadadas a desaparecer por não fazer o mesmo.
Assim, ao dizer que “hoje o cenário empresarial mudou significativamente”, “as boas práticas de governança são uma exigência de mercado” e “se não houver políticas claras e bem definidas de gestão, a companhia não consegue obter financiamento a bom preço”, a informação se perde na falta de contexto. Primeiro, por que somente “hoje” o naturalmente mutável cenário empresarial mudou? Um economista deveria estar naturalmente a par das inúmeras transformações econômicas da história mundial, que sempre influenciaram o cenário empresarial, então, o que de fato mudou? Segundo, as exigências de que mercado exatamente? O mercado onde atua a Petrobrás certamente não é o mesmo de muitas empresas, assim como as condições vantajosas para atuar que foram a ela concedidas por seu acionista principal, então, por que haveria de se exigir destas o mesmo que se exigiria daquela? Terceiro, obter financiamento a bom preço no Brasil certamente não é garantia para a esmagadora maioria das empresas, obrigadas por muitos motivos a se contentar a redução na oferta de crédito e com uma taxa de juros altíssima, a maior do mundo atualmente. Trata-se, portanto, de discurso superficial, imediatista, que contraria, inclusive, ações adotadas pela Petrobrás para diminuir sua dependência de financiamento, como citado em outro trecho.
Ao tratar de questões relacionadas à sustentabilidade, a matéria peca mais uma vez no conteúdo, favorecendo o interesse midiático mais rasteiro em detrimento da qualidade da informação, ao mencionar a nova agenda de desenvolvimento sustentável para os próximos 15 anos citada pela presidente do CEBDS, por sua vez formada pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Ao dizer que “a agenda que temos agora é de longo prazo”, repete-se o erro do economista-chefe e se ignora completamente objetivos semelhantes propostos pela Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento (realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1992) e pelo Protocolo de Kyoto (1998).
Por outro lado, parece difícil acreditar que uma empresa que, segundo outra matéria da mesma edição, busca reduzir seu tamanho para se concentrar apenas no segmento de óleo e gás e consiga adequar-se aos objetivos ODS3 (“Assegurar uma vida saudável e promover o bem estar para todos, em todas as idades”), ODS7 (“Garantir acesso à energia barata, confiável, sustentável e moderna para todos”), ODS12 (“Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis”), ODS13 (“Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos”) e ODS14 (“Conservar e promover o uso sustentável dos oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”), principalmente por se tratar de atividade econômica cujo insumo principal é um recurso não renovável, potencialmente poluente (em sua forma natural ou refinada) e tecnologicamente considerado em declínio em face de novas tecnologias ditas sustentáveis.
Uma nova ordem
Ao tratar das recentes mudanças na governança corporativa propriamente dita, o que ficou pra trás foi aprofundar-se na citação da matéria a respeito da criação, em 2000, do Novo Mercado, nome dado pela Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F Bovespa) ao conjunto de empresas que teriam um nível avançado de governança corporativa, e da Instrução 480/2009 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que exigiria informações abrangentes sobre a estratégia e fatores de risco das empresas de capital aberto (como as que integram o Novo Mercado).
Tal atitude reforçaria a ideia de se tratar deste caderno de algo meramente publicitário (talvez fazendo jus a seu cabeçalho, onde se lê também “O Globo – Projetos de Marketing”, bem como em sua versão eletrônica, onde a matéria é descrita como um “especial publicitário”), do contrário poderia ser oferecido ao leitor questionamentos como, por exemplo, por que o estatal Banco do Brasil faz parte do Novo Mercado e a Petrobrás não, ou como a CVM permitiu que por quase seis anos uma empresa de capital aberto e ações negociadas na BM&F tenha conseguido negociar seus papéis livremente, diante da sucessão de escândalos contábeis e financeiros apresentados pelas investigações da operação Lava Jato, anteriores à própria operação e à instrução mencionada.
Talvez um movimento tímido tenha sido feito pelo jornal neste sentido, ao apresentar as informações sobre o Novo Mercado da BM&F Bovespa e a Instrução 480/2009 da CVM junto a explicações de outros especialistas (que não participaram do seminário, ou pelo menos não estão assim relacionados pela matéria) para abordar não somente a governança corporativa em si, como também alguns temas correlatos. Assim, tem-se a impressão de que tais especialistas estão mais para corroborar do que agregar valor significativo ao conteúdo.
É de se supor que a sangria de recursos financeiros à disposição da Petrobrás tenha reflexos no orçamento destinado ao marketing, algo que, por sua vez, dado o gigantismo da empresa, afetaria as receitas de muitos veículos de comunicação acostumados a polpudas verbas neste sentido. Mais ainda, a extensão da cadeia produtiva afetada pelas investigações da operação Lava Jato suscitaria todos os esforços possíveis das organizações afetadas para sua recuperação o mais breve possível, diante do grande prejuízo econômico, político e social.
Por outro lado, foi necessário muito tempo e esforço de muitas gerações para que a sociedade brasileira ficasse, dolorosamente, diante de seu talvez mais grave problema – a corrupção – para que as conquistas que começam a se fazer sentir se percam de forma tão leviana. É chegado o momento de certos segmentos da imprensa avançarem decididamente em direção a uma governança corporativa efetiva, cultivando valores como ética, responsabilidade e transparência, buscando desta forma a conciliação entre interesses corporativos e dos demais.
Referências
“Diálogos Empresariais: Governança Corporativa”. Jornal O Globo, caderno O Globo – Projetos de Marketing, Ano XCI, n° 30.127, 31 de janeiro de 2016.
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Mauricio Augusto Cabral Ramos Junior é administrador de empresas e mestre em Administração