Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diário arretado, celeiro de craques

Em 1959, nos meus 17 anos de idade, já eram correntes em Salvador os termos “cobra” e “cobra criada” para designar gente com muito talento e habilidade para uma prática específica. Por isso, naquele ano, eu entrei com cuidado ou temor reverencial num “serpentário” chamado Jornal da Bahia (“Jba”), cuja primeira edição datava de 21 de setembro de 1958.

Uma outra metáfora para aquele jornal é “orquestra afinada”. Sob a batuta do empresário e banqueiro João Falcão, os “cobras” que ali tocavam ruidosamente as teclas de não sei quantas máquinas de escrever eram jornalistas como João Batista de Lima e Silva (um dos melhores profissionais que conheci em minha vida), Glauber Rocha (o cinema já era uma paixão), Flávio Costa, Ariovaldo Matos, Heron de Alencar, Osvaldo Peralva, José Gorender, Gerard Lauzier.

Ali se formariam muitos outros: João Ubaldo Ribeiro, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, Antonio Torres, Sebastião Néri, Newton Sobral, Otacílio Fonseca, Wilter Santiago, Emiliano José, Rafael Pastore, Anísio Félix, Mariluce Moura, eu próprio. A lista é enorme, dou conta de uma pequena parte dela, porque em 1965 me mudei de Salvador para o Rio. O fato é que, no Jornal da Bahia, se aprendia mesmo a fazer jornal moderno, tal a atualidade prática dos instrutores. Basta dizer que a técnica do lead foi introduzida nas redações da Bahia por aquele jornal.

Lei de Segurança Nacional

Isso tudo consta de Não deixe esta chama se apagar – história do Jornal da Bahia, de João Falcão (Editora Revan, 252 págs.) e certamente interessa à história do jornalismo brasileiro. Mas o que aí se narra de interesse para a história do jornalismo no mundo começa no próprio título do livro, pois se trata do slogan de uma campanha de arrecadação de fundos – um episódio da luta travada contra Antonio Carlos Magalhães.

Nomeado governador da Bahia pelo regime militar, o biônico usou de todos os recursos, conhecidos e desconhecidos, para tentar fechar o jornal. Nos termos do livro, o político “usou os métodos mais maquiavélicos a que um governante pudesse recorrer, cometendo o maior crime contra a liberdade de imprensa de que este país já teve notícia desde o início de sua história republicana”.

João Falcão, na verdade, não era mero empresário do ramo imobiliário e banqueiro. Era também um jornalista, formado em Direito, que militara durante 20 anos no Partido Comunista, inclusive como elemento de ligação com o Kominterm, isto é, a Internacional Comunista. Em 1938, foi fundador da revista Seiva (fechada pela ditadura varguista em 1943) e, em 1942, do matutino O Momento, que circulou até 1956.

Entre 1947 e 1950, João Falcão foi responsável pelo “aparelho” clandestino de Luiz Carlos Prestes no Rio de Janeiro. Em 1955, foi eleito deputado federal. Recentemente, após os 70 anos de idade, encetou uma carreira literária, publicando biografias e livros de memórias.

Estes dados biográficos constam do livro, mas vale reiterá-los aqui para que se lance mais alguma luz sobre aspectos controvertidos da história do Jornal da Bahia. É que o jornal atravessou fases muito diferentes entre si. Houve a “fase áurea”, que vai dos começos até a primeira metade da década de 1970, quando se afastaram jornalistas marcantes como João Batista Lima e Silva, José Gorender, Ariovaldo Matos e outros.

Em 1972, houve um rumoroso processo militar contra o redator-chefe João Carlos Teixeira Gomes, por denúncia de Antonio Carlos Magalhães, que terminou com a absolvição do jornalista, defendido pelo criminalista Heleno Fragoso. Na Câmara Federal, o deputado Feitas Nobre disse em discurso que “a decisão marcará época na história da imprensa em nosso país e é altamente significativa para a prevalência da Lei de Informação sobre a Lei de Segurança Nacional”. O episódio consta deste livro atual de Falcão, porém está mais amplamente relatado em Memórias das Trevas, do próprio Teixeira Gomes, um best-seller nacional em 2001.

Rima boa

Apesar de financeiramente abalado, o Jornal da Bahia arrostou corajosamente as intempéries. Mas se desenhava ao mesmo tempo uma outra fase, as divergências internas e os afastamentos, senão os banimentos. De um modo geral, porém, não predominava o ressentimento, como se infere de um depoimento público de Ariovaldo Matos (destacado intelectual baiano) em 1977:

“Acho que me tornei incômodo para o João, um cara a quem admiro e a quem devo muito. Em 1951, por exemplo, viajei para a Europa com roupas emprestadas por ele. Em 1956, quando estava em Paris, sem passagem para voltar e praticamente passando fome, o João me mandou uma passagem. Em 1964, quando estava preso, ele fez gestões para que minha família não passasse fome. No dia em que ele me estender a mão, eu o abraçarei. João é um cara que precisa ser visto a partir da premissa de que ninguém é obrigado a ser herói a vida inteira”.

No mesmo depoimento, Matos salientava, entretanto, que “o João também me fez várias sacanagens”.

Quero crer que essas “sacanagens” se entendam como as conseqüências indiretas das pressões a que o empresário João Falcão foi submetido pelas forças não tão “ocultas” assim, como alardeara o impagável Jânio Quadros. As pressões eram de fato enormes, proporcionais à escalada das dívidas do jornal. Basta dizer que, no final do governo de ACM, João Falcão colocou à disposição da Editora Jornal da Bahia S/A, para pagamento da dívida, os seguintes bens: (a) sua própria casa, no bairro de Ondina; (b) sete lojas no comércio de Salvador; (c) dez apartamentos de quarto e sala; (d) quarenta e seis lotes de terreno no valioso Condomínio Parque Interlagos; (e) metade de sua cota na Usina Itapetingui, em Santo Amaro; (f) um terço da fazenda Nova Vista, em Feira de Santana e (g) Fazenda Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no município de Humildes.

Todos estes bens foram vendidos. Falcão observa: “Com exceção de minha casa própria em Ondina que, felizmente, não teve comprador”.

Eu já mourejava na imprensa do Rio quando esses fatos se passaram. Mas acompanhava tudo à distância, imerso que sempre estive, emocionalmente, na minha formação adolescente no Jornal da Bahia. As memórias daquele período me assaltam sempre. Lembro-me, por exemplo, do relato que me fizeram da ida desse grande jornalista chamado Alberto Dines ao Jornal da Bahia, como consultor, no final dos anos 1960. “Mas esse sistema é artesanal”, teria diagnosticado Dines sobre o processo de trabalho que ali se dava. É que, apesar da modernidade do texto (a inovação do lead, por exemplo) e, mesmo, das máquinas impressoras, artesanato não é uma designação inadequada para a prática jornalística do Jba.

Dines tinha razão, portanto. Mas razão é uma boa rima para coração. Racional e cordialmente fizemos, todos nós, aquele que foi, sem sombra de dúvida, o jornal mais “retado” da Bahia.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro