Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

E para o New York Times, nada ?

Impressiona sempre a capacidade inesgotável do New York Times de aparecer bem na foto, mesmo fazendo caretas hediondas. Agora, o planeta cai de pau sobre a repórter Judith Miller, de 57 anos, demitida do jornal [ver remissão abaixo] por ter desempenhado lá o papel consentido de porta-voz dos falcões da Casa Branca. O caso afunda na lama parte da imprensa americana, para não falar do governo Bush e do desastre da ocupação do Iraque, mas ao Times cabe nada além de respingos. Todos lhe providenciam desculpas, é impressionante. Deve ser a permanente disposição para a autoflagelação. Afinal, oferecer os anéis para preservar os dedos é tática bem-sucedida, sempre atrai complacência. Lembra a família real britânica: quanto maior o escândalo e mais esdrúxula a explicação… mais forte a carapaça da monarquia.


Relembrando o episódio: a demissão de Judith Miller deu-se em 9 de novembro, após duas semanas de negociação com os advogados do Times. Execrada por colegas de redação (e de redações país afora), ela concordou afinal em retirar-se, certamente com rendosa indenização, após 28 anos de casa – e 85 dias de prisão, diz ela que em defesa do sigilo de fonte. Escolheu ser presa para não informar ao procurador especial Patrick J. Fitzgerald quem no governo vazara a identidade da agente da CIA Valerie Plame, senhora casada com um ex-embaixador americano. Em artigo no próprio Times em 2002, ele contou que, em missão oficial do governo Bush, não encontrara indícios de armas de destruição em massa no Iraque. Nenhuma novidade para quem acompanhava o caso: apenas confirmava relatórios anteriores dos inspetores da ONU.


Pensando com o governo


Mas os falcões da guerra retaliaram. Por vingança, vazaram na imprensa o nome da mulher do ex-embaixador. Nos Estados Unidos, revelar identidade de espião é crime, e a procuradoria-geral abriu inquérito. Judy Miller não publicou matéria identificando a espiã, ela nem precisava: colegas pressurosos o fizeram. Seu envolvimento com o governo era tamanho que Bill Keller, editor-executivo do Times, insinuou em memorando interno recente que havia sexo no meio do imbróglio. Pediu desculpas depois, mas insinuou. Se era verdade, só saberemos no próximo livro de escândalos, quem sabe da própria Judith Miller. O público não faz idéia do quanto a imprensa esconde nesses alvoroços ‘políticos’, e só descobre quando se publicam as versões, a peso de ouro.


O que é fato: nesses 28 anos de casa, boa parte deles cobrindo assuntos de segurança nacional, Judith Miller prestou incontáveis desserviços aos leitores do NYT e, por tabela, ao mundo, que reproduziu acriticamente suas diatribes. Que vocalizavam interesses oficiais ou de grupos econômicos – os quais, nesta administração, se misturam como nunca antes na história da república americana. A imprensa alternativa e a crítica da mídia vinham apontando tais desserviços há anos.


A prova de que o Times não ignorava tais críticas é que várias foram respondidas por profissionais do jornalão. A própria Judy contestou algumas delas: chegou a dizer ao veterano crítico Michael Massing que, como repórter investigativa, seu trabalho não era avaliar informações do governo, nem fazer análise independente do trabalho da inteligência, mas informar sobre o que pensava o governo! [Ver remissão abaixo para o artigo ‘Os nós de uma história mal contada’.]


Um pau-mandado?


E o Times, para voltar à vaca fria? O Times mantém-se naquela de marido enganado. Publica todo o perigoso besteirol que seus repórteres incompetentes escrevem, leva o país à guerra, com todas as letras, e depois pede desculpas ao leitor, esse estóico: não sabíamos, fomos enganados, lenientes – cúmplices, responsáveis… opa, desculpe, leitor, isso eles nunca disseram não! O rosário de autocríticas dos últimos anos foi sempre tímido.


Recentemente, alguns colunistas ousaram um pouco, mas só um pouco. Começando pela festejada Maureen Dowd, que escreveu artigo arrasador – agora! – sobre o modus operandi de Judy Miller. Calou-se, entretanto, quanto às responsabilidades do jornal nos muitos casos de desserviço ao jornalismo, ao leitor, ao país e ao mundo em todo esse escândalo. Pelo menos é o que se depreende da coluna dominical (30/10) de Sérgio Augusto no Estado de S.Paulo [remissão abaixo]: Judith Miller, diz o colunista, reproduzindo Maureen Dowd, ‘sempre ignorou limites e jamais encontrou no jornal quem lhe pusesse uma ‘coleira’. Sempre à solta, de conluio com o lobista iraquiano Ahmad Chalabi, levou o NYT a avalizar a tese das armas de destruição em massa, desmoralizando o jornal e afetando a confiança dos leitores’.


Como assim, ‘levou’? Bill Keller era pau-mandado de Judy? E também seu antecessor, Howell Raines? E aquele monte de editores empilhados no poder como cascata em bolo de noiva, faziam o quê? Nunca avaliaram fontes e informações, ainda mais em assunto tão grave? Mas que pasquim é este? Ou o comprometimento a que Keller aludiu no memorando era nas internas? (perdão pela maldade, Judy Miller contagia…). Não ficou qualquer lição do caso Jayson Blair, quando editor atrás de editor deixou passar pencas de matérias mentirosas com fontes inventadas?


Cara-de-pau delirante


E essa descrição tão remota do ‘lobista iraquiano Ahmad Chalabi’? Lobista era Marcos Valério! Chalabi disputava poder, e o conquistou no ‘governo’ iraquiano com intrigas publicadas no Times sob a chancela de seus editores. Ou ninguém na redação sabia que ele, o ‘eleito’ da Casa Branca, era a fonte de Judith? Ora, tanto sabia que o chefe da sucursal do Times em Bagdá contestou a repórter.


Mas o Times é como a rainha da Inglaterra, não se abate. Vejam trechos de um editorial do dia 10, traduzido pelo Último Segundo, que começa assim: ‘Pode ter sido difícil para o presidente Bush dizer a Ahmad Chalabi, o vice-primeiro-ministro do Iraque, que ele não receberia as boas-vindas oficiais em Washington nesta semana’. E continuava: ‘O histórico de Chalabi como negociador duplo e fonte não-confiável data de décadas. Há muito ele não é acreditado pelos que, no Departamento de Estado e na CIA, conhecem melhor o Iraque’.


Não é inacreditável? Não é de uma cara-de-pau delirante? Depois de usar e abusar das matérias de sua repórter, as quais publicou na primeira página sem-cerimônia alguma, o jornal tem a coragem, a ousadia, o atrevimento de dizer que o sujeito não é confiável há décadas por quem entende da coisa!


Criminosamente omissa


Mas não ficam nisso não, ah, não, eles vão além. ‘Chalabi não é apenas um oportunista político. Ele, mais do que qualquer outro no Iraque, é responsável por encorajar a administração Bush a cometer dois erros desastrosos na intervenção no país: basear a justificativa da guerra na premissa de que Saddam Hussein tenha programas de armas não-convencionais ativos e falsamente imaginar que os iraquianos saudariam a invasão com pura alegria’.


Agüentem um pouco mais desse editorial torturante: ‘Mas durante os meses cruciais nos quais a administração Bush planejava a invasão e ocupação, Chalabi se tornou o oficial pró-guerra favorito do Pentágono e da Casa Branca, principalmente por dizer à administração o que eles queriam ouvir. É preocupante que a administração ainda esteja disposta a recompensá-lo com audiências de tão alto escalão [Chenney e Condoleezza vão recebê-lo].’


Tem mais, mas não carece. Como o conjunto de sua redação, Maureen Dowd foi criminosamente omissa em seu texto, ainda por cima tardio: é fácil chutar cachorro morto. Chutasse antes. E a palavra ‘coleira’ é mais chocante ainda. Os repórteres do Times que trabalham direito usam coleiras? Não importa, concretamente é impossível separar a repórter de seu jornal: Judith Miller absolutamente não levou os EUA à invasão do Iraque. Nunquinha. Se alguém, além dos falcões, levou os EUA à guerra, com base em mentiras deslavadas, esse alguém foi The New York Times. E não é de hoje. Felizmente, tentativa anterior, mais grave até, fracassou [ver remissão abaixo para ‘A lambança do New York Times].


Alegre sapateado


Prossegue o texto de Sérgio Augusto: ‘E a cúpula do NYT, injuriada com a repórter, lavou as mãos [após a bronca de Maureen], se é que não brindou a descompostura com champanhe’. E deve estar celebrando até agora, como se heróica fosse, a ‘façanha’ de ter recusado o espaço da página op-ed (opinião e editorial) à despedida da repórter [ver a íntegra abaixo, intitulada ‘O adeus de Judith Miller’]. Grandes porcarias. Mais valeria ao leitor que a cúpula lhe tivesse negado as muitas primeiras páginas em que Judith Miller destilou seu veneno em favor de interesses escusos.


Sérgio Augusto disse, ainda na coluna de 30/10, que Judy Miller ‘engoliu calada a espinafração’ de Maureen Dowd. Não engoliu não. Ela foi esperta, como sempre: aguardou pacientemente as negociações de seus advogados com os advogados do maior jornal do mundo. Em 9/11, quando saiu o acordo e ela se demitiu, regurgitou vários textos em sua página na internet: o adeus ao Times, uma resposta malcriadinha a Maureen Dowd (‘Concordo, repórteres devem ser mais do que estenógrafos. O mesmo vale para colunistas. Espero que você se corrija logo’), e respostas formais à formalíssima crítica do ombudsman (ou editor público) do jornal, Byron Calame. Respostas arrumadinhas, enumeradinhas, como se faz quando não se tem defesa conceitual.


Calame tentou deixar o nariz fora da lama ao dizer, na coluna de 23 de outubro: ‘Novas informações sugerem que as práticas jornalísticas de Miss Miller e dos editores eram mais danosas do que eu temia.’ [Editor & Publisher, ‘Judy Miller devolve ataques a Dowd e Calame’, 13/11]. Novas informações? Novas para quem, cara-pálida? Na resposta a Calame, Judy destrói mais uma reputação. Argumenta que ‘avisou’ à editora Jill Abramson, outra crítica retardatária da repórter, que era necessário apurar as circunstâncias de suas conversas com as ‘fontes’ sobre ex-embaixador, o marido de Valerie Plame. ‘Lembro disso vividamente, porque ocorreu em meio à demissão de Howell Raines, tempo de crise para os editores, e ela podia estar preocupada.’ Pode? Sabem quando Raines foi demitido? Em 2003. Convenhamos, Judy Miller pode sapatear alegremente sobre as críticas de Jill Abramson. Uma merece a outra.


Cheios de verdinhas


O Times vai responder?, pergunta Editor & Publisher. E perguntamos todos: fará diferença? A revista Fair, media watcher americano bem enfezadinho, acha tudo isso uma grande farsa. Para eles, jornalistas tipo Judith Miller exterminam cláusulas pétreas do jornalismo como a defesa do sigilo de fonte. Promessa de anonimato a essa gente, afirmam, raramente está a serviço do público.


E jornal complacente, que serviço presta ao público? Ninguém tem coragem de abrir o verbo. Pelo contrário, há uma permanente generosidade em relação a suas responsabilidades. Catherine Mathis, porta-voz do NYT, salvou o seguinte trecho do ensaio demolidor de Howell Raines sobre o NYT de 20 páginas em letra pequena, publicado na Atlantic Monthly um ano depois de sua demissão: ‘No artigo, Mr. Raines considera o Times ‘indispensável’ e ‘insubstituível’. Nós concordamos. E isso se deve ao inspirado trabalho de homens e mulheres do Times ao longo de décadas’.


Não é tudo. Em meio a todo esse tiroteio, Judy Miller encerra seu texto de despedida com a seguinte frase: ‘Saio sabendo também que o Times continuará sua tradição de excelência que o tornou indispensável a seus leitores, um padrão para os jornalistas e um reduto da democracia’. Entre as mordidas, puxam o saco um do outro descaradamente. A imprensa dispensável, substituível e de excelência zero diria que essa estranha rasgação de seda é coisa de ‘acordão’ explícito. Daqueles bem cheios de verdinhas, em doc eletrônico, caixa de rum ou cueca.


 


O adeus de Judith Miller


JudithMiller.org / Posted by Judith Miller | November 09, 2005 / Judith Miller´s Farewell


Ao editor:


Em 6 de julho escolhi ir para a prisão para defender meu direito de jornalista de proteger uma fonte confidencial, o mesmo direito que permite que advogados garantam confidencialidade a seus clientes, padres a seus paroquianos e médicos ou psicoterapeutas a seus pacientes. Embora 49 estados tenham estendido este privilégio a jornalistas, pois sem tal proteção a imprensa livre não pode existir, não há lei federal equivalente. Escolhi ir para a prisão não apenas para honrar meu juramento de confidencialidade, mas também para dramatizar a necessidade desta lei federal.


Após 85 dias, mais que o dobro de tempo que qualquer outro jornalista americano passou na cadeia por esta causa, concordei em testemunhar perante o grande júri do procurador especial Patrick J. Fitzgerald sobre minhas conversas com minha fonte, I. Lewis Libby Jr. Fiz isso somente depois que minhas duas condições foram atendidas: primeiramente, o Sr. Libby liberou-me voluntariamente, por escrito e por telefone, de minha promessa de proteger nossas conversas; e, em segundo, o procurador especial limitou suas perguntas somente às questões relevantes ao caso Valerie Plame Wilson. Diferentemente do que afirmaram relatos inexatos, estes dois acordos não poderiam ter sido alcançados antes que eu fosse para a prisão. Sem eles, eu ainda estaria na cadeia, talvez, advertiram meus advogados, acusada de obstrução da justiça, um crime. Embora alguns colegas discordaram de minha decisão de testemunhar, permanecer na cadeia após ter atendidas minhas condições pareceria um martírio autólatra ou pior, um esforço deliberado para obstruir a investigação sobre crimes sérios do procurador.


Em parte por essas objeções de alguns colegas, decidi-me, após 28 anos e com sentimentos misturados, deixar o Times. Sinto-me honrada por ter feito parte deste jornal extraordinário e orgulhosa de minhas realizações – um Pulitzer, um DuPont, um Emmy e outros prêmios –, mas triste por deixar minha casa profissional.


Mas principalmente escolhi demitir-me porque nos últimos meses eu me transformei em notícia, algo que um repórter do New York Times nunca quer ser.


Mesmo antes de ir para a prisão eu me transformei num pára-raios da fúria pública sobre as falhas da área de informações que ajudaram a levar nosso país à guerra. Diversas matérias que escrevi ou co-escrevi foram baseadas nesta inteligência falha, e em maio de 2004 o Times concluiu, em nota dos editores, que a cobertura deveria ter refletido um ceticismo maior.


Em discurso que fiz no Barnard College em 2003, um ano antes da publicação desta nota, perguntei se as informações da inteligência sobre armas de destruição em massa (ADM) eram meramente erradas, ou se eram exageradas ou mesmo falsificadas. Acreditei então, e ainda acredito, que a resposta à má informação é mais reportagem. Lamento que não me tenha sido permitido buscar respostas para as perguntas que levantei em Barnard. A falta das respostas continua a corroer a confiança na imprensa e no governo.


O direito de resposta e a obrigação de corrigir imprecisões são também marcas de uma imprensa livre e responsável. Estou satisfeita por Bill Keller, editor-executivo do Times, finalmente ter esclarecido as observações feitas por ele, sem apoio nos fatos e pessoalmente dolorosas. Alguns de seus comentários sugeriram insubordinação de minha parte. Eu sempre escrevi as matérias que me cabiam de acordo com as normas éticas e de apuração do jornal, e cooperei com as decisões editoriais, mesmo quando delas discordei.


Saúdo a página editorial do Times por advogar uma lei federal de proteção de jornalistas antes, durante e depois de minha prisão e por apoiar recentemente, apenas duas semanas atrás, minha disposição de ir para a cadeia em defesa deste princípio vital. Sobretudo, quero agradecer aos colegas que me apoiaram depois que fui criticada nessas páginas. Minha resposta a esta crítica pode ser lida na íntegra em meu site: JudithMiller.org.


Continuarei defendendo uma lei federal de proteção do jornalista. Em meus escritos futuros, pretendo chamar a atenção para as ameaças internas e externas às liberdades em nosso país – al-Qaida e outras formas de extremismo religioso, terrorismo convencional e com ADM e o sigilo crescente no governo em nome da segurança nacional –, assuntos que têm definido por muito tempo meu trabalho. Saio sabendo também que o Times continuará sua tradição de excelência que o tornou indispensável a seus leitores, um padrão para os jornalistas e um reduto da democracia.